Rudolfo Lago*
O que segue abaixo é um texto do ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro. Foi distribuído internamente no governo com o título de "Nota de Conjuntura 16". Na briga interna do PT, há quem embarque na onda dos adversários de Genro – José Dirceu à frente – e busque diminuir o papel que ele tem na construção desse modelo de coalizão que o presidente Lula tenta montar para o seu segundo governo.
Genro deu uma escorregada ao decretar sem combinar com o chefe o “fim da era Palocci”. Às vezes, ele paga mesmo pela língua. Mas que ninguém se engane. A tese que permeia a relação política do governo com os partidos nessa segunda fase da era Lula é mesmo de Genro. Por isso, nada melhor do que saber dele próprio o que é que está sendo pensado e construído. Vamos ao texto de Genro. Em seguida, faremos algumas considerações nossas:
1. O que é um governo de coalizão, perguntam-me alguns companheiros. Esta pequena nota tem a finalidade de contribuir com algumas informações e conceitos. Uma coalizão pode surgir de diversas circunstâncias, mas ela é, na democracia, normalmente originária de regimes parlamentaristas. Emerge como solução política quando um partido, ou mesmo uma coligação organizada para disputar as eleições, não consegue maioria para viabilizar a montagem do governo, a governabilidade e a estabilidade política.
2. Nada impede, porém, que seja formado um governo de coalizão no regime presidencialista, a partir da iniciativa do próprio presidente. No atual sistema, o chefe do Executivo tem força política e institucional para tanto.
3. No regime parlamentarista, quem governa é o Parlamento, que "forma" um Executivo segundo a decisão da maioria parlamentar. No regime presidencialista, o chefe do Executivo não recebe nenhuma delegação do Parlamento: ela vem direto da soberania popular, através das urnas. O presidente, porém, só poderá aplicar um programa de governo se, nas suas principais iniciativas – que dependem de decisão legislativa – ele conseguir formar maiorias.
4. O presidente, no regime presidencialista, ou se elege com uma bancada majoritária, ou pode formar a sua maioria através de acordos, tácitos ou explícitos, com as forças políticas que têm representação no Poder Legislativo (Parlamento). Se o presidente não dispõe de maioria para governar, ele precisa formá-la. Foi o que ocorreu até certo período do atual governo do presidente Lula. É o que vem ocorrendo no Brasil, onde os presidentes eleitos não possuem maioria parlamentar e as alianças políticas feitas para a eleição não garantem a governabilidade (“presidencialismo de coalizão”).
5. O governo de coalizão reduz a possibilidade de acordos pontuais para exercer o poder. É uma forma mais aprimorada de exercício do “presidencialismo de coalizão”. Constitui um avanço para a consolidação do processo democrático e uma renovação da cultura política do país. Porque os objetivos fundamentais que ele vai perseguir são antecipados e ficam visíveis, para a sociedade, os compromissos entre os partidos que vão compor o governo. Os parlamentares integrantes da coalizão vinculam seu comportamento aos objetivos acordados pelos seus partidos.
6. Não é fácil fazer funcionar, integralmente, o princípio da coalizão. Ele deve se expressar através de uma certa uniformidade de postura no Parlamento. E não é fácil por dois motivos fundamentais: ao contrário do que ocorre no parlamentarismo, mesmo que o presidente não tenha maioria, ele não “cai”, como ocorre com o primeiro-ministro se recebe um voto de desconfiança (isso "flexibiliza" a responsabilidade dos parlamentares). Em segundo lugar, não há no Brasil uma sólida unidade programática interna aos partidos (daí a dificuldade de acordos sólidos entre eles).
7. De qualquer forma, a constituição de um "governo de coalizão" aqui no Brasil, mesmo que não atinja plenamente os seus objetivos, é um avanço democrático importante. Permite formar o governo de forma mais transparente, com os partidos políticos como sujeitos da ação política e governamental; permite expressar publicamente um programa mínimo, que dá identidade política imediata ao governo e o compromete com uma base social mais definida; possibilita maior previsibilidade nas relações do governo com o Parlamento e valoriza expressamente os partidos políticos, substituindo as fortes relações regionais, que ainda imperam no Brasil, por relações mais programáticas, de caráter nacional.
8. Um governo de coalizão não é um governo de união nacional, que em caso de catástrofe, guerra ou severa ameaça externa, pretende trazer para o governo a totalidade ou pelo menos quase todas as forças políticas de um país. Um governo de coalizão deve marcar de forma bem clara as diferenças entre oposição e governo, mantendo o contencioso democrático sobre os rumos do país, o futuro da economia e a destinação das políticas públicas mais importantes.
9. A coalizão afirma diferenças entre os partidos que a compõem precisamente porque ela se baseia na definição de identidades mínimas. Para um determinado período, seja um mandato, seja a parte de um mandato, são eleitas determinadas prioridades, em torno das quais os partidos se comprometem. A coalizão presidencialista exige uma alta dose de confiança no presidente, pois ela não se origina de acordo sacramentado no Parlamento para compor o governo, mas se origina do acordo em torno do que o presidente propõe para um determinado período, cuja delegação veio direto da soberania popular.
Eis, então, acima, a tese de Genro. Em torno dela, os movimentos políticos das últimas semanas demonstram que a idéia pegou. Lula tem conseguido ampliar bem a sua base de sustentação. Garantiu a adesão do PDT. Terá ao seu lado a parcela majoritária do PMDB, em um grau que talvez nem mesmo José Sarney, que era filiado ao partido, teve.
Isso, em tese, deve garantir a Lula razoável tranqüilidade para ir tocando o barco no Congresso, aprovando os projetos que requeiram apenas maioria simples ou absoluta. Terá de negociar com a oposição somente nos casos de emendas constitucionais. Em tese. Porque o arrazoado de ciência política que Tarso Genro nos proporciona aí acima complica na prática quando a tese colide com a realidade dos partidos e do Congresso brasileiro. É aí que o angu de Tarso Genro periga encaroçar.
O primeiro sinal de perigo vem de um estudo feito pela assessoria técnica do PSB, um dos partidos da base de Lula. A assessoria analisou o perfil eleitoral de cada um dos 513 deputados que tomarão posse em fevereiro do ano que vem. A partir do que prometiam nas suas campanhas ou da forma como já atuavam politicamente – seja como deputados no atual mandato, seja em outros cargos eletivos –, dividiu-os em “deputados com perfil assistencialista” e “deputados com perfil não assistencialista”.
Esses últimos é que seriam os ideais para a formação, com sucesso, de um governo de coalizão. São pessoas que pensam os seus mandatos, a sua atividade parlamentar, a partir de projetos de país, de caráter nacional. Assim, facilmente se engajariam em torno de uma proposta comum que Lula fizesse. Em torno da tal “agenda mínima” preparada.
Já os “deputados assistencialistas” pensam muito pouco no país, em um projeto nacional ou nos pontos de uma “agenda mínima”. Eles pautam a sua atividade política numa espécie de troca material de favores com seus eleitores. Na concepção da própria assessoria do PSB, esse tipo de deputado “insinua, em uma relação pública, os parâmetros de retribuição de favor que caracterizam as relações na esfera privada”.
Ou seja, para esses deputados, o que interessa é obter ferramentas de poder que lhes possibilitem fazer uma troca de favores com o eleitor. O que eles querem são cargos com verba pública ou dinheiro fácil no orçamento que financie projetos assistencialistas que eles possam vender como seus. Que lhes permitam passar ao eleitor a idéia de que o benefício mingua se ele não permanecer deputado. Em bom português, portanto: o que eles querem é a manutenção da velha relação fisiológica entre Executivo e Legislativo que pautou o primeiro governo Lula e todos os demais governos do país desde a redemocratização.
O ponto final dessa novela é que, de acordo com o trabalho da assessoria do PSB, os deputados com perfil assistencialista representam a ampla maioria dos parlamentares. Nada menos que 68,03% do total. O líder do PSB na Câmara, Alexandre Cardoso (RJ), que encomendou o projeto, acaba pessimista diante do trabalho feito por seus assessores.
“Tudo isso gera uma rotina perversa nos governos brasileiros: no primeiro ano, se aprova tudo porque todo mundo tem a expectativa de conseguir o que deseja do governo; à medida em que essa expectativa se frustra, porque governo nenhum vai poder prestar todos os favores, o apoio vai minguando e os governos terminam em crise”, analisa. Agora, essa relação governo/políticos ganha novos nomes e contornos. O desafio será provar que não será apenas uma nova roupagem para o conteúdo de sempre.
* Jornalista há 20 anos, Rudolfo Lago, Prêmio Esso de Reportagem em 2000, foi repórter político de algumas das principais redações de Brasília. Hoje, é editor especial da revista IstoÉ e produz o site http://www.rudolfolago.com.br/.
Texto publicado em 1º.12.2006. Retificado às 2h35 de 03.12.2006.
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