Ronaldo Brasiliense, de Itaituba (PA)*
Em seu acanhado consultório no hospital público Menino Jesus, em Itaituba, oeste do Pará, a mais de mil quilômetros de Belém, a médica Amélia Ayako Kamogui de Araújo, 50 anos, mantém uma rotina espartana. Ex-secretária de saúde do município, essa paranaense formada na década de 1980 pela Universidade Estadual de Londrina, pediatra, com curso de especialização de doenças tropicais concluído no Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará, há mais de três anos coleta sangue do cordão umbilical das crianças recém-nascidas naquela maternidade.
Os dados colhidos até agora se revelam dramáticos: em mais de 1.500 mulheres e igual número de recém-nascidos, o teor de mercúrio encontrado no sangue de mais de 95% dos bebês investigados são maiores do que o máximo tolerado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Nas demais amostras, também detectou-se presença de mercúrio, embora em níveis considerados aceitáveis.
O receio dos pesquisadores é que entre as populações garimpeiras e ribeirinhas do rio Tapajós, principalmente nos municípios de Itaituba e Jacareacanga, surjam casos do "mal de minamata", uma doença provocada pela ingestão de metilmercúrio que atingiu centenas de pessoas na baía de Minamata, no Japão, na década de 1950, onde crianças nasceram com má formação congênita e registraram-se mais de mil óbitos (clique aqui para saber mais).
Amélia Ayako trabalha como voluntária num ambicioso megaprojeto desenvolvido pelo Instituto Evandro Chagas (IEC), centro de excelência em doenças tropicais da Amazônia, sediado em Belém. O trabalho de conclusão do curso de mestrado de Amélia Ayako, em andamento, versa sobre o tema: "Prevalência de má-formação congênita em recém-nascidos em Itaituba".
"Entre os 3.500 meninos e meninas nascidos em 2004, após a análise de ficha por ficha, constatamos crianças com níveis elevados de mercúrio no organismo", afirma Amélia Ayako. "Não encontramos, porém, nenhum paciente com quadro clínico de contaminação pela doença de minamata", tranqüiliza a médica.
O mais produtivo garimpo do país
Na investigação feita por Amélia Ayako, foi detectada uma porcentagem maior de anomalias em mulheres grávidas que vieram de áreas de garimpo.
Além do sangue do cordão umbilical, vem sendo feita também coleta da placenta e do cabelo de mulheres, crianças, ribeirinhos e garimpeiros em várias localidades às margens do rio Tapajós e afluentes para determinar o nível de contaminação por mercúrio nas populações afetadas.
Raimunda do Socorro Silva Pinheiro tem 26 anos, é maranhense, e acompanhou o marido na grande aventura de sua vida. Deixou Codó, no interior do Maranhão, em busca da fortuna nos garimpos do Tapajós, em Itaituba, onde há mais de 50 anos funciona a maior e mais produtiva reserva garimpeira do Brasil.
Cálculos do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) apontam para a utilização de mais de 800 toneladas de mercúrio nos garimpos do Tapajós, que é um dos principais afluentes do rio Amazonas.
Pouco mais de três anos depois de se embrenhar pela rodovia Transgarimpeira, que corta a reserva, em busca do lendário Eldorado, Raimunda já esqueceu os sonhos de riqueza.
A realidade, dura, se impôs. Carregando no colo o filho E.M.P.C, de três anos, a garimpeira maranhense ficou sabendo que seu menino é uma entre as mais de mil crianças investigadas pelo IEC nas maternidades de Itaituba que apresentaram, ao nascer, elevados teores de mercúrio no sangue, conforme comprovado em coleta do sangue retirado do cordão umbilical durante o parto.
"Felizmente a doutora disse que meu filho não tem sintomas da doença do mercúrio", consola-se a garimpeira, referindo-se ao mal de minamata.
Bomba de efeito retardado
Desde o ano 2000, pesquisadores do IEC, liderados pela biomédica Elizabeth Santos, atualmente diretora-geral do instituto, investigam a contaminação por mercúrio em seres humanos na região de influência do rio Tapajós.
As pesquisas realizadas no Tapajós procuram avaliar a influência da poluição ambiental gerada pelo uso do mercúrio na atividade garimpeira sobre a saúde das populações humanas expostas, usando como indicador epidemiológico a presença de mercúrio em recém-nascidos de mães residentes na área de risco.
"Os níveis de mercúrio encontrados em mães e recém-nascidos caracterizam um quadro de exposição que vem sendo observado em populações da região com teores médios acima dos limites da normalidade e em alguns casos acima do Limite de Tolerância Biológica, segundo os parâmetros internacionais", afirma a diretora do IEC.
Secretário de Meio Ambiente no governo Fernando Collor, o ambientalista gaúcho José Lutzenberguer, já falecido, alertou durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) que o uso de mercúrio nos rios da Amazônia era uma bomba de efeito retardado. Mais cedo ou mais tarde, explodiria.
A própria ministra do Meio Ambiente do governo Lula, Marina Silva, enfrenta problemas de saúde resultantes da exposição ao mercúrio. A bomba de efeito retardado anunciada por Lutzenberguer é o principal alvo das pesquisas desenvolvidas com mercúrio na Amazônia, principalmente no rio Tapajós.
Alimentação pode esclarecer mistério
"A gente busca uma explicação para saber por que teores alterados de mercúrio no organismo não estão causando doenças", diz Elizabeth Santos, que é responsável pelas mais aprofundadas pesquisas sobre contaminação por mercúrio realizadas na Amazônia neste século.
Ela informa que os pesquisadores do IEC adotaram duas linhas de investigação: uma, rastreando a contaminação por mercúrio através da alimentação; e a outra, por genética individual.
"Precisamos saber se a alimentação da Amazônia influencia para que o mercúrio não efetive sua atividade tóxica", ressalta Elizabeth Santos, alertando para o fato de que a alimentação na Amazônia é bem mais variada que a existente na região de Minamata, no Japão, onde a doença se desenvolveu pela primeira vez.
Conhecer os teores de mercúrio e metilmercúrio em recém-nascidos de mães residentes nas áreas de risco de contaminação por mercúrio no Vale do Tapajós é parte de um trabalho que envolve outra investigação de grande relevância: ampliar o conhecimento sobre a forma de contaminação materna, que se processa através da ingestão de peixes, uma via de alcance amplo, atingindo as populações ribeirinhas, inclusive as indígenas.
A informação é considerada fundamental e até hoje continua faltando entre os inúmeros estudos desenvolvidos na região de influência do rio Tapajós e da reserva garimpeira.
"A vida pré-natal é considerada muito sensível à ação de substâncias tóxicas e as diversas ou continuadas exposições que a mãe venha a sofrer no decorrer da gestação resultam no acúmulo do produto dessas substâncias no feto e podem produzir danos da mais variada gravidade, caracterizando-se como doença congênita", explica Elizabeth Santos.
Resultados já obtidos
A diretora do IEC destaca que "todas as crianças pesquisadas nas maternidades de Itaituba apresentavam teores de mercúrio significativos". Até oito partes por milhão (PPM), os teores são considerados "normais". De 8,1 PPM a 30 PPM, são considerados "toleráveis". "Trinta PPMs é o limite de tolerância biológica admitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS)", ensina Elizabeth Santos, acrescentando que foram encontrados teores superiores a 30 PPM em adultos e crianças que, no entanto, continuavam assintomáticos (sem sintomas de doença).
Numa primeira fase, a pesquisa feita pelo IEC investigou 1.510 mulheres e igual número de recém-nascidos. As mães apresentaram média de idade de 22 anos, variando de 12 a 46 anos, e eram em sua maioria do município de Itaituba (94,2%).
"A média de mercúrio em sangue dos recém-nascidos foi de 16,68 hg/l, variando de 0,350 a 125,87 hg/l", relata Elizabeth Santos. "A correlação entre os teores de mercúrio de recém-nascidos e mães mostrou-se fortemente positiva", prossegue a cientista.
Ela continua: "O maior valor dessa pesquisa será o acompanhamento clínico e laboratorial dessas crianças ao longo do tempo, por pelo menos cinco anos, para saber se elas apresentam sinais no seu desenvolvimento que possa ser atribuído ao metal em sua forma orgânica, ou mesmo sinais e sintomas clínicos de intoxicação por mercúrio".
Outro aspecto importante da pesquisa, segundo a diretora do IEC, diz respeito ao conhecimento da dinâmica do processo de eliminação ou concentração do mercúrio nos organismos infantis durante os primeiros anos de vida. "Sabe-se que o desenvolvimento de crianças nos primeiros anos de vida possui regras próprias que não podem ser comparadas necessariamente com os processos que ocorrem num organismo adulto", ensina Elizabeth Santos.
"A partir dessa pesquisa poderemos esperar informações importantes para compreender os mecanismos que possam estar presentes e que impedem o aparecimento de sinais clínicos de intoxicação em organismos com teores elevados de mercúrio, como temos encontrado em comunidades ribeirinhas no vale do Tapajós", conclui.
Mercúrio, um problema de alcance global
O mercúrio é utilizado pelos garimpeiros para coletar o ouro, na formação do amálgama (processo de extrair ouro ou prata das minas que utiliza o mercúrio). Geralmente, a proporção é de dois quilos de mercúrio para um quilo de ouro.
O uso de mercúrio em jazidas de ouro, com a finalidade de separar o metal precioso do minério bruto, tornou-se um problema ambiental de alcance global.
Isso porque o mercúrio descartado no processo contamina as águas de rios, usadas para a lavagem dos minérios. Esse metal, pesado e extremamente tóxico, é acumulado nos organismos de espécimes da fauna e da flora. Se peixes contaminados por mercúrio forem consumidos por seres humanos, há sérios riscos de desenvolvimento de uma doença que ataca o sistema nervoso, chegando, em casos extremos, a ser fatal.
Mesmo assim, o mercúrio continua sendo amplamente usado para separar ouro em garimpos e segue a poluir rios e, conseqüentemente, os mares. Ecossistemas inteiros podem estar em risco, assim como as populações humanas fixadas neles, especialmente as crianças.
As medidas de restrição do uso de mercúrio nos países do Primeiro Mundo e nas grandes corporações levaram esse problema ambiental a se concentrar em pequenos garimpos nos países mais pobres, onde a fiscalização é diluída e ineficaz. No Brasil, o Centro de Tecnologia Mineral do Ministério da Ciência e Tecnologia (Cetem) apresentou propostas para desenvolvimento de pesquisas com mercúrio em três países: Brasil, Indonésia e Zimbabwe.
A proposta brasileira – fruto da experiência acumulada pelo Cetem em análise ambiental nas jazidas auríferas onde se emprega mercúrio – foi escolhida como vencedora no caso da Indonésia e do próprio Brasil.
Pesquisadores do Cetem coordenam o Projeto Mercúrio Global nos dois países tendo, como parceiras associadas para o diagnóstico de saúde, duas instituições com reconhecida experiência nesse campo: o IEC, órgão público federal vinculado à Fundação Nacional de Saúde (Funasa); e, no caso da Indonésia, o Instituto de Medicina Forense da Universidade de Munique, na Alemanha.
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