Em 1980, os velhos jogavam dominó e reclamavam da vida. Os poodles não frequentavam manicures, e Francisco Petrônio apresentava Festa Baile no canal 2 (ou no 13?). Eu contava quatorze anos e me sentia à vontade diante dos achaques dos amigos do meu avô. Isso quer dizer que eu era um garoto travado. Os velhos do final dos 70 e começo dos 80 não tinham lá muitas alternativas para disfarçar suas decrepitudes. Dignidade, ainda, não era uma palavra gay. Não havia as ditaduras da hidroginástica,dos antioxidantes,das bipolaridades e das nutricionistas. O tempo agia implacavelmente e não só os velhos daquela época reclamavam da vida e reagiam ao modo deles, mas as pessoas em geral e até os santos fumavam, bebiam, comiam torresminhos, blasfemavam e eram infelizes sem frescura. Eu respeitava aqueles velhos e, de certo modo, apodrecia com eles.
Com exceção da tia Tereza e do Agnaldo Rayol – que ocupou o lugar de Francisco Petrônio no Festa Baile –, morreram todos. E eu levei trinta anos na lomba. Hoje dói mais.
Por outro lado, não me sentia nada à vontade em fazer parte da geração do Arnaldo Antunes. Aliás, não fazia. Além de repudiar as ombreiras e o corte de cabelo, uma vergonha alheia e profunda se apoderava de mim toda vez que o ex-Titã dançava, ou melhor, toda vez que ele era acometido de um ataque epilético no palco do Aeroanta. Até hoje não sei o que era mais constrangedor, os chiliques do xarope do Arnaldo Antunes ou a Hebe Camargo fazendo campanha pro Maluf.
O velho, meu avô, contava pra todo mundo que havia comido a Hebe num rendez-vous lá em Ubatuba. Vai saber, né? Eu me contentava em sonhar com Magda Cotrofe. Os 80 foram um veneno para mim. Depois que a seleção do Telê naufragou em Sarriá/82, a coisa só fez piorar. Vieram a AIDS, o Sarney, os sertanejos e, sinceramente, eu precisaria ter outro estômago para revirar tudo isso outra vez. Não sou ruminante, portanto consultem Charque (ed.Barcarolla, 2011). O que eu quero resumidamente dizer é que Brasil ficou mais escroto que eu. Tirando o breve e divertidíssimo período Itamar, posso dizer que perdemos na música, no cinema, perdemos Vinicius e Paulo Coelho virou escritor. E eu segui escroto, e travado.
Somente no começo dos anos zero-zero é que tive a oportunidade de conhecer o Rio de Janeiro. Aluguei um muquifo na Djalma Ulrich, depois um conjugadão na Leopoldo Miguez, aí resolvi sair da zona sul e fui morar no Grajaú quase Andaraí, perto do Morro dos Macacos. Um ano de solidão e sombras estendidas. Pensei que me curaria da solidão indo para Santa Teresa, mas quebrei a cara. O bairro é (ou era na época em que morei lá…) um canil dentro de um baile funk – com direito a Cristo e várias vistas deslumbrantes, mais um serralheiro debaixo da minha janela. Nessa época, praticava ou tentava praticar a arte de me abstrair, o máximo que consegui foi virar alma penada. Assombrei muito a Lapa, e graças a Deus não conheci nenhum artista plástico residente em Santa Teresa. Até que encheu o saco e eu voltei para São Paulo. Idas e vindas, frequentava mais o terminal Grande Rio do que o aeroporto Santos Dumont. Me apaixonei duas vezes, levei um pé na bunda, desisti e chorei feito um tonto na ponte aérea – porque na rodoviária é que não dava para chorar e ao mesmo tempo ser assaltado pelos taxistas.
E doze anos se passaram. Eis que depois de mais um pé na bunda volto ao Rio. A cidade que me acompanha na alegria e na tristeza. E dessa vez a tristeza é demais. E, por conseguinte,o Rio também ficou mais triste, e bonito.
Quem me salvou foi o garoto do amendoim. A idéia era me enforcar em Paquetá no dia seguinte. Não fosse o garoto, eu teria matado ou morrido naquela noite mesmo, bem na frente da escada de azulejos do Selarón. Digamos que foi a cachaça quem deu a letra. Ou melhor, a partir dos gorós que eu entornava, um mantra “acaba, acaba comigo” instalou-se na minha cabeça, e cada vez que eu pedia mais cachaça, mais e mais o mantra tomava conta dos meus cornos e fazia com que minhas idéias fora do lugar subissem pela escada de azulejos e reverberassem lá pras bandas do Inferno perto da Chácara do Céu, vários degraus acima das Carmelitas. A única coisa que me ocorria, além da visão turvada pelo mantra, era pensar em mais cachaça, então eu bebia e remoía: “Senhor, meu Deus, tenha piedade de mim, acaba comigo no Rio de Janeiro. Aqui, meu Deus, tenha piedade de mim. No Rio. Acaba comigo. Pode ser de infarto, bala perdida, atropelamento, paisagem deslumbrante. Mas acaba comigo no Rio de Janeiro, tenha piedade de mim, no Rio”.
Senhor, acaba comigo aqui e agora no bar do Ximenes, na frente da escada de azulejos do Selarón; acaba, acaba comigo no Rio de Janeiro, meu Deus! Oh,Deus! Se o Senhor conseguisse deixar de ser sádico por um minuto, porra, acabava comigo sem mais delongas, afinal eu sou seu filho e não aguento mais sofrer por amor, tenha piedade de mim, bala perdida, infarto fulminante/ nem precisa me levar pra Paquetá: que seja aqui e agora, assim eu economizo o dinheiro do ferry-boat e gasto tudo em cachaça, acaba, acaba comigo.
No meio da súplica, pensei em relevar o fato de o Michael Jackson ter dançado moonwalk na escada do Selarón, estava tudo certo. Ou não? Acho que não. Parece que não foi na escada do Selarón que a neguinha andou pra trás junto co’as nossas misérias, acho que foi no Dona Marta. Ah,dane-se. Agora não importa. Tanto faz. Acaba comigo, mas antes eu é que vou acabar com essa garrafa de Boazinha.
O céu tá longe, e daí? Encaro a subida, sou capaz de lamber azulejo por azulejo até chegar lá em cima, ah, meu Deus, acaba, acaba comigo no Rio de Janeiro. Mantra, mantra, cachaça mais cachaça.
Eis que aparece o garoto do amendoim. Que por sua vez larga uma amostra grátis sobre a mesa, no exato momento que mais uma vez eu pedia o final do meu sofrimento sobre a terra e necessitava urgentemente de algo salgado para rebater a Boazinha.
Um milagre do capitalismo. De onde a gente menos espera – dizia o Barão de Itararé – é que não vai sair nada, nem fudendo. Bem, é certo que não foi o Waltinho Salles quem largou a amostra grátis de amendoim sobre a mesa. Mas, cazzo! Enquanto um monte de gente escrota se esgoelava, fazia milagres duvidosos e matava em seu nome, meu Deus, eu comprei dois cones de amendoim pelo preço de três. O garoto teve a manha de temperar os amendoins com orégano. Baita idéia, ficou muito bom. Se fosse por piedade e não por merecimento, eu teria comprado três cones pelo preço de dois. Ou pior. Talvez tivesse dado uma moedinha pro garoto para me ver livre dele, e jamais conheceria os amendoins temperados com orégano. Que, aqui entre nós, valiam/e valem muito mais do que o preço de três milhões de anjos – incluindo seus respectivos cones e briocos. Sem falar no sorriso maravilhoso que o garoto abriu quando teve seu trabalho reconhecido, isso nunca vai ter preço. Nem pra ele, nem pra mim. Salvou minha vida.
Penso que às vezes seria legal Deus não se meter no negócio dos homens, e vice-versa. O fato é que minha pressão arterial devia estar abaixo do cu da cobra, e se aquele amendoim não curou a dor de amor, clareou minhas idéias. Conclusão: milagres também podem acontecer por nossa conta e risco. Dali,fui pra Lapa. E não perdi a viagem. Encontrei Zé Pilintra na esquina na Relação com Gomes Freire. Quando ele me disse que sofria do mesmo mal, e que igualmente não tinha vocação, nem distanciamento científico para ser amante, logo ele, bem, aí dei mais um crédito a humanidade e aos amendoins temperados com orégano, e seguimos na direção da rua do Lavradio.
Quem diria: Zé Pilintra, um Ricardão apaixonado. Mais curioso era viver esses refluxos bem na frente do Rio Scenarium, em plena Lavradio. Impressionante como os lugares conservaram seus hábitos e fantasmagorias, apesar do tempo e da babaquice instalada. Ontem, fez quatrocentos anos, e coincidentemente também era sábado: a fila de mauricinhos, patricinhas e turistas babacas serpenteava a Lavradio e avançava pela Rua do Senado. Enfrentamos a muvuca, e pegamos o rumo da Visconde do Rio Branco, eu & Zé Pilintra, dois Ricardões apaixonados.
O anjo que vendia amendoim temperado com orégano escafedeu-se. Talvez naquele momento prestasse socorro pr’algum traveco no Beco do Rato, sabe-se lá. Na direção oposta, pra lá de Bagdá quase chegando na Visconde do Rio Branco, entoávamos – mais de farra do que fato – o mantra “Acaba, acaba comigo no Rio de Janeiro”. E foi bem no instante em que a camélia caiu do galho, um pouco antes de ela dar dois suspiros, que Zé me pegou pelo braço, e confidenciou ao pé d’ouvido: “Se é verdade que a dor deixa o homem mais elegante, compadre, vou te dizer uma coisa, tu te arrasta de fraque e cartola pelos becos da Lapa”.
Viva Leminski! Abaixo as viúvas do Leminski! Mesuras, deferências, elegâncias e homenagens à parte, viramos à direita e finalmente chegamos à Praça Tiradentes. Palavras dele: “Chegamos no céu”.
O nome do céu do Zé Pilintra é Estudantina. O malandro deu um jeito de livrar nossa entrada, e em poucos minutos já se enlaçava com uma dama de vermelho no baile dos mortos. Oh, Deus, meu Deus, acaba comigo no Rio, mas não me mata antes de eu dançar o último bolero com Maria Schneider, que acabava de entrar na Estudantina acompanhada de um cara que lembrava muito o Poderoso Chefão: se ele não fosse preto e retinto, eu poderia jurar que era o Marlon Brando. Zé Pilintra dava um show na pista, dois pra lá, dois pra cá, eu chamei o garçom, enquadrei la Schneider na minha alça-de-mira, calculei pessimamente os riscos, e pedi outra dose de uísque, mais um falso brilhante. E um guaraná.
Miami é aqui, Miami não é aqui. Na terceira dose de Teatcher’s, os velhos da minha infância, todos mortos e enterrados na Festa Baile dos 8o irromperam feito zumbis no palco da Estudantina, e juntaram-se a Pilintra. Me convidaram para dançar, e eu – é claro – travei.
Nunca fui nenhum pé de valsa, mme. Schneider que me esperasse. Acendi um cigarro, e encarei o terraço da gafieira. Só não vê que não quer. A praça Tiradentes reformada, vazia, morta: ” condenada, feito a Estudantina” – foi o que sentenciou o garçom ao deixar o guaraná sobre a mesa. Ele mesmo um vulto importado do baile dos mortos.
Agora que a Estudantina foi tombada, o prefeito podia aproveitar o ensejo e fazer o mesmo com os cemitérios São João Batista e Caju. Quem sabe os íncubos não renascem das trevas, e voltam pro mundão pra fazer um recall de suas tragédias, desgraças e existências desperdiçadas. Os empreendedores do seculo XXI deviam informar-se a respeito de um negócio chamado maldição. Acredito que os lugares, bem como as pessoas, têm um prazo de validade, e morrem. Deviam deixar a Tiradentes pros mendigos, pra sujeirada, pras putas de 10 reais. Ela já deu o que tinha que dar. Gastou. A vocação da Tiradentes, diferentemente da Lapa – que não morreu mas virou um quiosquão do Mastercard – é sucumbir à podridão dos homens e do tempo. Os otimistas me jogariam o sul da Ilha de Manhatan, SoHo e TriBeCa no focinho e, depois, argumentariam com a revitalização de Puerto Madero e mais duas dezenas de áreas degradadas que se transformaram pela ação dos mesmos homens que as destruíram, oquei, os exemplos são férteis e inúmeros.
Eu diria: depende do lugar e da função. Instalem um Playcenter na doutor Arnaldo, onde, hoje, existe um lugar chamado cemitério do Araçá. Talvez o trem fantasma faça algum sucesso. Aliás, até o Playcenter morreu. É o caso da Pça.Tiradentes, aquilo ali é um repositório de alvoradas seculares que jamais se repetirão. Belas e históricas alvoradas, a bem dizer. A Estudantina, hoje, só faz sentido em duas hipóteses: ou numa cidade cenográfica, num lugar que só existe para ser ficção, feito o Bataclan de Gabriela, ou do jeito que está: agônica, comida pelos cupins. Não existe nexo em promover bailes funk ali, ou transformar a Estudantina num museu de pretos velhos para o deleite de modernetes low profile.
Quem investir em cemitério vai colher defunto. Entrementes, Zé Pilintra se esbaldava no baile dos mortos, me chamava. Os casais dançavam Besame Mucho, como se fosse a última vez. Eu ameacei ir pra pista, mas não fui. Imaginei uma festa de pagodeiros num condomínio da Barra da Tijuca, lembrei da falecida e covardemente assassinada Boate Help, engoli a azia que subia e descia de dentro do meu esôfago; arrotei cemitérios, mais cemitérios. Fracassei como amante. A mulher do próximo havia me abandonado, como a cidade cansou-se da Praça Tiradentes, e agora os homens tentavam reanimá-la inutilmente, ah, puta velha e exausta de guerra, que morria mais uma vez comigo no Rio de Janeiro, graças a Deus.
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