Paulo Kramer*
Noitinha da última quarta-feira na elegante sede da Coca-Cola em Brasília, à beira do lago. O artista fotográfico Orlando Britto lançava seu novo livro, Corpo & alma, uma jornada ao Brasil profundo a bordo de imagens surpreendentes.
A fila para abraçá-lo e pegar um autógrafo serpenteava em torno da piscina. Para driblar a longa espera, enquanto curtia o saxofone de Danilo Chaves e sua banda, fixei a atenção no grupinho à minha frente. Dois deputados calouros da próxima legislatura bebiam das palavras de um veterano da crônica política de Brasília. Tão atentos o ouviam que mal mastigavam o pastelzinho ou o canapé. O velhote bebia uísque mesmo.
A voz da experiência ensinava àqueles novatos os segredos do sucesso na vida pública, no tom jocoso que o brasileiro usa para transmitir as verdades mais sérias: “Você chega aqui sem contatos, sem amigos e, o que é pior, sem dinheiro para saldar as dívidas da campanha. Sente-se um zero, uma gotinha no mar do plenário, esmagado pela grandiosidade do triângulo de poder da Câmara: a presidência da Mesa, o colégio de líderes e o Palácio do Planalto.”
O duo se entreolhou suspirando: “É isso mesmo… até o banheiro a gente precisa perguntar onde fica, se perde no corredor das comissões, anda no sentido oposto da esteira rolante… Um horror!”
Braços apoiados nos ombros da dupla, o decano lecionou: “O primeiro passo pra sair do anonimato é ser adotado, isso mesmo, adotado por um jornalista entre as dezenas que cobrem os trabalhos da Casa. Cultive-o, procure-o logo na primeira semana do mandato, diga que lê as colunas dele desde garoto, que tem umas pautas ótimas sobre o filho ou a mulher do governador do seu estado pra lhe passar com exclusividade…”. Bebeu um longo gole.
Os dois, excitados pela curiosidade: “E depois, e depois?!”
O velho valorizou o instante de mistério antes de continuar: “Transforme-se em referência culinária da sua região em Brasília e comece a convidar, de início, outros novatos desenturmados. Peça ao seu jornalista adotivo pra salpicar notinhas em colunas da corte sobre a ‘mesa de tapioca do deputado fulano’, ‘a rabada amiga da deputada beltrana’… com todo o respeito. E não se esqueça de repercutir a notícia entre os colunistas sociais da sua província. Com as bênçãos da mídia, fica mais fácil atrair convidados importantes da próxima vez, gente de alto clero, quem sabe?”
Mais um gole. Nada como ficar, pelo menos, duas doses acima da realidade. Os novatos entoaram um corinho súplice: “Que mais, que mais?!?”
O oráculo da imprensa não se fez de rogado: “É preciso aprender a atuar na Comissão Mista de Orçamento. Procure o líder do seu partido e, com humildade triunfal, declare que abre mão de todas as emendas a que você tem direito em favor dele, dizendo: ‘Não quero um tostão, só peço que você aceite minha homenagem de amizade e respeito por seu comando firme, esclarecido e genial!’ A princípio, o líder vai olhar pra você como a um doido varrido, mas, em seguida, ele o abraça e agradece de coração. E você: ‘Que é isso? Não é nada… Olhe, estamos juntos, hein? Conte sempre comigo.’ O líder: ‘Você também, você também, viu? Quando vai ser a próxima tapioca? Faço questão de aparecer lá, me avise!’”.
Puxou um pigarro: “Esse friozinho que sopra do lago é um perigo pra bronquite.”
Siderados, os neófitos imploravam: “Continua, pelo amor de Deus!”
A fonte da sabedoria voltou a jorrar: “É o momento de pinçar a outra ponta da costura. Depois de um minucioso estudo dos projetos de estimação do seu líder…” Os calouros interrompem: “Não projetos de lei. Projetos de engenharia. Obras públicas” [o docente podia ter pulado essa parte, que os dois pupilos, ex-prefeito, um; deputado estadual, o outro, já conheciam bem até demais].
O outro retoma o raciocínio: “Você descobre a obra-chave para o seu líder, encravada no reduto eleitoral prioritário dele, e marca um almoço com o representante de algum interesse empresarial forte… Por exemplo, o cara da siderurgia, que vive circulando pelo Congresso. No restaurante, antes de chegar o couvert, você já vai falando que é fã de carteirinha do dr. Gerdstein. Que empreendedor! Que homem de visão!!! Você dá os parabéns pelo patrão que ele tem e acrescenta que faz questão de que, qualquer dia desses, ele o leve pra cumprimentar o velho magnata. O outro recolhe os elogios com capricho, já pensando no relatório para a matriz, e devolve: ‘Mas é claro, com prazer, a hora que você quiser!’”.
Parou um pouquinho para tomar fôlego, mas era a dupla que o ouvia quase esquecida de respirar: “Aí, é entrar de sola perguntando se o cara conhece aquela ponte eternamente inacabada entre Buritiburó e Barra do Bidê. Claro que conhece. Você explica que é ponto de honra para o seu líder terminar a obra, que ele agora vai ter uma grana a mais do orçamento só pra isso. E o golpe de misericórdia: ‘Como a ponte leva muito aço, claro que pensei logo em você’. O outro não tem tempo sequer de agradecer, e você já engrena: ‘Só quero um favorzinho. O líder vem tomar café comigo amanhã, e eu preciso que o velho Gerdstein ligue por volta das oito e meia (aqui está o meu cartão).’ Na hora você atende, passa o telefone para o convidado e pronto! Você será o padrinho do casamento da ponte com o aço, do aço com a ponte! Duvido que tenha mais problemas de financiamento de campanha. E quero ver o partido lhe negar a presidência daquela comissão permanente.”
O cronista lambia as próprias palavras: “Bom, isso no primeiro ano do mandato, porque nos três seguintes você precisa cuidar de se reeleger…”.
Neste ponto, recordei artigo escrito por um ex-aluno brilhante, Lúcio Rennó, hoje professor na Universidade do Arizona, em Tucson. O título é sugestivo (“O que é que o reeleito tem?”, em co-autoria com Carlos Pereira, e publicado na Dados, vol. 44, nº 2, 2001), e a conclusão é taxativa. Para se reeleger, o deputado deve evitar "perder tempo" proferindo discursos ou apresentando proposições legislativas, para se concentrar em carrear benefícios, principalmente verbas federais, para as suas bases locais. Afinal, a oratória parlamentar morreu faz tempo, ninguém ouve ninguém no plenário, e o Executivo é o grande legislador do país.
Depois dessa breve digressão, devolvo a palavra ao seu dono: “Nada de carimbar, logo de cara, suas emendas de orçamento destinando-as às prefeituras X ou Y… Primeiro, você lança, digamos, 500 mil reais numa rubrica genérica, do tipo ‘Obras para a conclusão do sistema de abastecimento d’água em municípios de até 200 mil habitantes no estado de…’ Depois, você negocia a transferência ao longo do ano com aqueles prefeitos que se mostrarem realmente comprometidos com o seu projeto de reeleição, e não com a campanha do seu adversário, pouco importa se do mesmo ou se de outro partido. É ali, na base do conta-gotas: o prefeito dá uma declaração no rádio elogiando seu trabalho em prol da comunidade e a emenda é liberada…”
Um dos ouvintes atalhou: “Bom, mas a área econômica do governo só libera as emendas de quem fica com o Planalto nas votações nominais, né?”
O guru, com ar de tédio: “Claro, só não precisa de dinheiro do governo quem tem independência financeira. Oposição, meu filho, é esporte pra rico… Nunca me esqueço de um velho senador mineiro que contava que na sua terra era assim. A mãe, pendurava um baita retrato do Tiradentes na parede e advertia os filhos para que notassem bem o que tinha acontecido ‘com o último dos nossos’ que ficou contra o governo!”
Já estávamos quase chegando à mesa onde o autor assinava volume após volume, e o velhinho parecia reunir forças para o fecho da sua aula magna. Por fim, sentenciou: “No segundo mandato, ou até mesmo do meio para o final do primeiro, já dá pra se candidatar a um cargo da Mesa, algo como a quarta-secretaria, que cuida da moradia dos deputados. Verdade que, hoje em dia, com esse negócio de emancipação feminina, a mulher de muito político trabalha e não quer mudar pra Brasília e interromper a carreira. O cara vem sozinho, embolsa o auxílio-residência e mora em hotel. Pois bem, e aqueles outros que se transferem com a família? Vão morar em blocos e apartamentos funcionais semi-abandonados, paredes descascando, canos entupidos, o diabo a quatro. Imagine você, quarto-secretário, ligando para a esposa aflita do seu colega e garantindo a presença do encanador em menos de meia hora. Agora, multiplique isso pelas outras esposas e veja quantas ‘campanhas permanentes’ serão feitas em seu nome, noite após noite, em todos aqueles leitos conjugais! Com tanto apoio político, você um dia acaba virando ministro, rapaz!”
Os deputados nada responderam; arfavam, apenas, antegozando a nomeação, como em transe mediúnico. Foi aí que o calejado escriba finalmente percebeu minha presença atenta e cobrou legitimação para os seus ensinamentos: “Não é verdade, professor?” Rebati com outra pergunta: “Quem sou eu para contradizer vossas inexcedíveis lições”. Disse adeus ao trio e, enquanto olhava o artista jamegando meu livro, lembrei, sei lá por quê, o – este, sim! – inexcedível Rui Barbosa: “De tanto ver triunfarem as nulidades etc, etc.”
Ah, meu Águia de Haia, você não viu nada.
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