18 Crônicas e Mais Algumas (S.Paulo, Boitempo, 2011) marca o retorno da controvertida (para muitos, não para mim) jornalista, psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, com uma seleção de textos primorosos, que eu não classificaria exatamente como crônicas, mas algo entre o ensaio e a literatura propriamente dita, pois é neste limite tênue, complexíssimo, neste fio da navalha entre a contundência e a ternura – elementos, para muitos, inconciliáveis – que ela se equilibra, soberana, dotada dum estilo único e dum material cada vez mais raro nos atuais escribas, e não só da mídia: substância (não confundir com “conteúdo” naquele sentido idiota de tudo aquilo que assume precisamente seu significado oposto, isto é, o vazio).
De forma que, para mim, Maria Rita é definitivamente uma escritora, cuja escrita jornalística, à qual se impõe o pé na atualidade, se tornou pretexto para o mergulho em profundidades desconhecidas mas sempre sob uma perspectiva comprometida com a justiça social, a denúncia dos vieses inconfessáveis da realidade nacional, capturando o leitor numa teia, numa tessitura em filigrana que o induz à reflexão, sequestrando-o, por momentos, ao banal, ao raso, ao supérfluo.
Um dos elementos detonadores deste livro foi sua demissão polêmica do Estadão no final do ano passado, onde há tempos assinava uma crônica quinzenal. A respeito, em “Uma psicanalista na imprensa”, ela comenta: “ Só agora, seis meses depois de ter perdido minha coluna quinzenal num grande jornal paulista, sob alegação de não ter ocupado o espaço para escrever como psicanalista, sinto-me capaz de formular com clareza isto que foi, para mim, uma convicção. Todo texto autoral publicado na imprensa tem por vocação ser opinativo e analítico, no sentido amplo. Penso que, ao ocupar esse lugar público, o psicanalista não deve se imbuir do papel daquele que explica o mal estar. O psicanalista é o mais perplexo dos cidadãos que, por deformação profissional ou pela estrutura psíquica que determinou sua escolha, não consegue deixar de ser afetado pelas formações do inconsciente da sociedade em que vive.”
Sem contar que a imposição do jornalismo de ultra-direita da “opinião do especialista” foi uma jogada bem-sucedida no sentido de alijar o “intelectual engajado ou público” – pois este poderia ir contra – como de fato ia mesmo – a interesses puramente mercantilistas e, entre estes, aquele que ordena em primeiro lugar “desinformar o leitor”. Aliás, o texto que “demitiu” Maria Rita – “Dois pesos…”, presente no livro – sobre o valor do voto dos pobres, acabou tendo um papel raro para um ensaio jornalístico ao se transformar, ele mesmo, em fato político.
Aqui deixo claro: não fosse a eficiência de seu texto, a coisa passava batida. Donde se conclui: quanto melhor, pior para o leitor.
Sobre os falsos agitadores, diz ela: “Existem os provocadores profissionais, que garantem seu espaço incomodando os leitores, desafiando o senso comum, tenham ou não algo interessante a dizer. Tenho dúvidas quanto à lisura desse expediente: a provocação vazia pode mobilizar paixões tristes entre os leitores, mas raramente mobiliza o pensamento. (…) Os verdadeiros provocadores profissionais, em geral, não se arriscam nesse terreno: cutucam o leitor, nunca o patrão”. Pensando em criaturas como William Bonner, Miriam Leitão, Merval Pereira e o nunca por demais esquecido Diogo Mainardi, vocês têm alguma dúvida que Maria Rita não tenha acertado na mosca?
Falando sobre os temas das crônicas inseridas na obra: “O leitor há de notar a predominância de temas dolorosos entre os escolhidos para este livro. O Brasil dói. O Brasil traumatiza. Aqui, a irresponsabilidade generalizada do poder público obriga cada cidadão a encarregar-se sozinho e com parcos recursos privados, de remendar em sua vida particular os buracos que o Estado e seus representantes de todos os escalões não deveriam ter deixado que se abrissem. Dói a violência inscrita na ordem social brasileira. Dói o jogo cínico da política, além da dor e da vergonha de constatar a persistência da desigualdade brasileira no campo dos direitos do cidadão e dos deveres do Estado. Impotente diante dos fatos, sinto necessidade de escrever.”
Contudo, Maria Rita comenta a importância da palavra, mesmo do psicanalista, na imprensa: “Se sua observação for equivocada – porque não existe diagnóstico certeiro, menos ainda fora da clínica – ao menos terá colocado a bola em campo. A palavra cava um buraco no muro de silêncio, ou de crenças pétreas, que obscurece a visão das raízes do sofrimento social.”
E falando em raízes, não foi Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) quem detectou “o horror das nossas elites pela realidade?” Que continuam iguais há quinhentos anos?
Pois é, Maria Rita, por estas e outras razões, o Brasil continua doendo. Muito.
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