Rudolfo Lago*
Nunca houve tanta diferença entre o projeto do presidente e os planos do seu partido. É por isso que quando Lula tenta defenestrar parte do PT para abrigar seus aliados, os petistas reagem defendendo seus postos com unhas e dentes. Depois da história dos "aloprados", em muitos momentos tudo o que Lula-lá deseja é ver o PT lá, naquela parte mesmo
Desde que estourou a crise do mensalão, o PT tem ouvido calado o presidente Luiz Inácio Lula da Silva responder que "não sabia de nada", que nada passou por ele, que tudo o que a cúpula do partido planejou de errado foi "trapalhada" e que os autores dessas invenções são uns "aloprados".
Sem entrar na questão sobre quem de fato acredita nessas versões, se é possível que Lula de fato tenha passado por tudo como a Carolina da canção de Chico Buarque (aquela que o tempo passou na janela e só ela não viu), o fato é que essa versão é extremamente conveniente para o presidente e extremamente inconveniente para o seu partido.
Enquanto Lula permaneceu incólume e está aí reeleito com 58 milhões de votos, praticamente toda a cúpula petista que iniciou o governo com ele caiu. O presidente tem mais quatro anos de mandato, mas pelo menos dois projetos presidenciais ruíram na esteira dos escândalos: José Dirceu e Antonio Palocci. E destruídos foram vários outros projetos de poder que não se sabe até onde pretendiam ir: Aloizio Mercadante, João Paulo Cunha, José Genoino, Ricardo Berzoini, etc.
Quem acha que a cúpula petista ficou unicamente feliz com a reeleição de Lula e relevou esses outros pontos, das duas uma: ou é adepto da filosofia de Sacher Masoch ou leitor de Poliana. Enfim, ou está convicto de que os petistas gostam de sofrer ou só consegue enxergar o lado bom em tudo.
A verdade é que o PT agüentou quieto a estratégia de Lula de se isolar da crise durante a campanha porque, por pior que ficasse a situação para o partido, muito pior ela seria se o presidente não fosse reeleito. Projetos de poder demolidos só poderiam ter chance de ser reconstruídos num ambiente em que o PT permanecesse no poder. E também só assim se poderiam fortalecer os alicerces das reputações que foram apenas abaladas. Ocorre que, agora, Lula venceu a reeleição. Não há nenhuma disputa eleitoral no horizonte dos próximos dois anos. É a hora, então, de a turma que sofreu abalos tentar se recompor.
Por outro lado, uma lição da política é que não existe vácuo nas relações de poder. Se alguém sai de cena, outro imediatamente busca ocupar o espaço vago. Os escândalos derrubaram a cúpula paulista do PT. Ao fazer isso, deram vez a políticos de outros estados que passavam longe das denúncias.
Desde as eleições municipais, eles têm conspirado em torno do que chamam de necessidade de "despaulistização" do PT. Lula, no fundo, também aprova a idéia. Embora seja um político de São Paulo, ele não deve ao estado a sua atuação política. Na verdade, ele perde a eleição ali. E não tem nem nunca teve qualquer pretensão limitada à política paulista. Como não deseja ser nem prefeito, nem governador, nem sequer vereador em São Paulo, para ele faz pouca diferença a importância que dão ao comando do estado os antigos integrantes da cúpula petista.
Na verdade, ele partilha da interpretação de que é São Paulo que atrapalha entendimentos políticos mais amplos, especialmente com o PSDB. O primeiro a tentar preencher o vácuo foi Tarso Genro, quando presidiu o PT. Sentiu na pele a reação de José Dirceu e o peso que ele ainda tem na estrutura interna do partido. Agora, as eleições colocam na linha de frente da despaulistização nomes como Jaques Wagner, Marcelo Déda e Jorge Viana.
As reações do PT exigindo de Lula espaço no governo e na estrutura de poder são, então, a parte que aflora de duas brigas que acontecem nos bastidores. A primeira é a disputa interna pelo comando do próprio partido, sobre quem ascende ao primeiro time do projeto petista de poder. E a segunda disputa é entre projetos de poder mesmo.
Quando percebeu que a única tática que poderia lhe garantir a sobrevivência quando estouraram os escândalos era isolar no PT a raiz e a autoria de tudo, Lula estabeleceu que seu projeto pessoal só seria o projeto do partido enquanto houvesse a convergência de ambos. Que ele, maior do que o PT, um fenômeno popular como talvez o país jamais tenha visto, podia, se isso viesse a ser necessário, seguir sem o seu partido.
A busca de um governo de coalizão, de um processo de entendimento político mais amplo, visa tornar o seu segundo governo menos dependente do PT. Ninguém deve se surpreender se, em 2010, Lula estiver apoiando um candidato de outro partido à sua sucessão. O que fizeram nos últimos dias os petistas foi uma associação das duas coisas acima. No geral, buscavam tentar demarcar que reagirão às tentativas de dissociar o projeto de Lula do projeto do PT. No particular, a ala que se tenta defenestrar do poder mandou os recados de que só cairá atirando.
* Jornalista há 20 anos, Rudolfo Lago, Prêmio Esso de Reportagem em 2000, foi repórter político de algumas das principais redações de Brasília. Hoje, é editor especial da revista IstoÉ e produz o site http://www.rudolfolago.com.br/.
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