“A indiferença por si só já é um índice da barbárie”, alerta Carolina Catini, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Diz isso em “Educação contra a barbárie”, coletânea de ensaios recentemente lançada pela Boitempo Editorial, ao tragicamente constatar como naturalizamos a mazela de uma juventude pobre sendo alijada da escolarização, ao mesmo tempo em que ela é atingida pelo genocídio ou pelo encarceramento em massa.
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Falando em sistema penitenciário, felizmente emergem também do ambiente acadêmico obstinadas tentativas de se nadar na contracorrente da desumanização, sobretudo daquela vinda dos tribunais da internet e dos nefastos programas policialescos de TV. Decerto, uma afrontosa ousadia de pesquisadoras e pesquisadores, em tempos de cruzadas obscurantistas contra o saber, obcecadas por revitimizar quem sempre viveu privações extremas; quem do Estado só foi merecedora ou merecedor do cárcere (sim, o estado mínimo já existe, e faz tempo, para marginalizadas e marginalizados do sistema).
A jornalista Natália Martino percorreu esse trajeto, indo ver e entender intramuros as individualidades e as complexas relações internas e externas estabelecidas por detentas, na maior e mais antiga penitenciária de mulheres de Minas Gerais, o Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto (PIEP), em Belo Horizonte. Na empreitada, aprofundou-se nas múltiplas camadas daquele tecido social, onde um senso comum bestializado enxerga apenas uma irrecuperável massa de criminosas.
Ao fim da imersão nesse ambiente (que pouca gente conhece, mas que tantos teimam em sobre ele “teorizar” a partir das mais estúpidas e rasas manifestações), a pesquisadora defendeu sua dissertação de mestrado no programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), intitulada “Mulheres encarceradas: cruzamentos entre redes familiares e redes prisionais”. Alcançou com o estudo o segundo lugar no Concurso de Monografias, Dissertações e Teses do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o que foi anunciado em julho.
Duas perguntas centrais conduziram o trabalho: 1) como os familiares das mulheres presas participam das dinâmicas prisionais; e 2) como as famílias se reorganizam depois da prisão dessas mulheres.
Na definição do objeto de pesquisa, Natália valeu-se de experiência anterior: a atuação na busca de narrativas que ajudam a entender o ambiente carcerário, jornada pela qual em 2017 lançou, juntamente com o fotógrafo Leo Drumond, o livro “Mães do Cárcere”; e que mantém viva, por meio da revista A Estrela.
Dias depois do anúncio do reconhecimento nacional à dissertação, Natália Martino falou com exclusividade ao Congresso em Foco.
O trabalho de campo de seu estudo foi feito em uma penitenciária, ambiente de privação de liberdade e, não raro, de muitos outros direitos. Que histórias ou narrativas foram mais impactantes durante essa fase da pesquisa, momento em que esteve mais próxima das mulheres encarceradas?
Faço trabalhos em unidades carcerárias há alguns anos, femininas e masculinas, e já estive em diferentes prisões. Nas mais precárias, o que impressiona no início é o mau cheiro e a escuridão. Mas em qualquer caso, são as histórias das pessoas presas que mais impactam, com as dificuldades de se escapar dos ciclos de violências, e com formas de adaptação e sobrevivência às pressões daquele ambiente insalubre.
Por exemplo: em um dos presídios onde trabalhei, vi presos sendo escoltados para fora das celas com muito sangue sobre o rosto. Soube depois que eles se cortavam nos braços e passavam esse sangue nos rostos para serem retirados por alguns minutos das celas superlotadas. Diziam-me que não me preocupasse, afinal, não era nem briga nem tentativa real de suicídio. Um mês depois de ver essas cenas, voltei à unidade, e um dos presos havia efetivamente se suicidado. Para mim, é impactante tanto a necessidade de uma estratégia como essa para dar alguns passos fora da cela, onde se passa 23 horas do dia, quanto a conclusão trágica da história.
Em outro trabalho que fiz, convivi com presas em uma unidade prisional durante um ano. Criei algum vínculo com essas mulheres, ao vê-las constantemente, e saber de detalhes das suas histórias de vida. Ficava feliz ao saber quando alcançavam a liberdade. Em uma ocasião, porém, uma dessas ex-detentas foi assassinada pouco tempo depois de sair, em função, aparentemente, de uma dívida de drogas. Isso mexeu demais comigo. Foi a mais palpável percepção de que a violência ocupa uma parte muito grande da vida dessas pessoas, e que é muito difícil escapar.
Na unidade onde realizei o trabalho de campo para a dissertação, especificamente, há algumas peculiaridades que impedem alguns desses cenários mais impactantes à primeira vista. Não há, por exemplo, grande mau cheiro. Apesar disso, depois de um tempo, fica fácil perceber que a privação da liberdade em si é carregada de uma série de crueldades que lhe são intrínsecas, como a separação de mães e filhos, que acabam do lado de fora, à própria sorte, sem nenhuma assistência. Enfim, são as histórias pessoais, repletas de tragédias cotidianas, que mais impressionam.
Há um predomínio de estudos científicos sobre prisões masculinas, ainda que estejamos vivenciando um crescimento proporcionalmente maior na população de mulheres presas. Temos aí mais um tipo de privação vivenciada por essas mulheres, mais “invisibilizadas” do que presos homens?
Essa invisibilidade começou a mudar na última década, em especial quando os dados oficiais passaram a destacar o crescimento exponencialmente maior da população feminina encarcerada, que, se segue minoritária (com algo entre 7% do total de presos), já é hoje, em proporção, muito maior do que era décadas atrás. Dados do Infopen [sistema de informações estatísticas do penitenciário brasileiro] indicam que, no período de 2000 a 2014, o aumento da população feminina foi de 567,4%, enquanto a média de crescimento masculino no mesmo período foi de 220,20%.
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Desde que isso se tornou notório, a academia começou a se voltar para o encarceramento feminino, na tentativa de entender suas peculiaridades. Também o Estado precisou buscar soluções criativas para as questões que se apresentavam, em especial no que diz respeito às gestantes presas, que geraram adaptações legais e estruturais no sistema penitenciário de todo o país. Podemos dizer, então, que essa invisibilidade tem sido reduzida, embora a ascensão do problema do encarceramento feminino na agenda acadêmica e governamental ainda apresente muitos desafios.
Um deles é o que eu evidencio em minha dissertação: o mais comum, em função da estrutura de gênero da nossa sociedade, é que as mulheres sejam centrais em suas famílias. Prender essas mulheres sem integrar a ação punitiva a ações sociais de atendimento e proteção, em especial aos filhos dessas mulheres, significa ampliar nossa desigualdade social, o que tende a impactar também no aumento, e não na diminuição, da violência.
Atualmente, sequer as estatísticas oficiais sabem quantas crianças desamparadas nossas políticas de encarceramento têm gerado e, a não ser em relação aos bebês nascidos na prisão, não há encaminhamento algum para os filhos de pessoas presas, o que tende a ser mais trágico no caso das mulheres, uma vez que as desigualdades de gênero em nossa sociedade acabam por imputar a elas a responsabilidade pelas famílias.
Nas entrevistas com as funcionárias da unidade, as ações de ressocialização e as de manutenção da ordem e da segurança interna são muitas vezes vistas como contraditórias. Que explicações encontrou para essa percepção das trabalhadoras da unidade, e que consequências ela têm para o que se espera de uma instituição desse tipo no arranjo social em que vivemos (que seria “recuperar” essas detentas para o retorno à liberdade)?
O nosso Código Penal preconiza que uma das funções primordiais da prisão é a chamada “prevenção especial”, ou seja, prevenção de aumento da criminalidade a partir da garantia de que as pessoas um dia presas não voltarão a cometer crimes. Isso deveria ser feito, de acordo com a lei, em especial a partir da oferta de possibilidade de trabalho. O problema é que nosso código data de 1940 e, de lá para cá, muita coisa mudou, em especial o número de pessoas presas.
A unidade penitenciária que eu estudei foi inaugurada no fim da década de 1950, com 60 vagas para mulheres, o que era suficiente para toda a população prisional feminina de Minas Gerais daquele período. Hoje, ela abriga mais de 400 presas, de um universo de mais de duas mil detentas no estado. Dá para se imaginar o aumento de complexidade na administração desse sistema, que precisa manter a ordem em um espaço exíguo, ocupado por centenas de pessoas, que passam 100% do seu tempo lá dentro, né?
Digo isso porque precisa ficar claro que, com tantos presos, é tarefa muito árdua manter qualquer tipo de atividade – seja profissional, educativa ou religiosa – dentro desses espaços. Os poucos lugares que conseguem fazer isso, como as APACs [Associação de Proteção e Assistência ao Condenado], fazem-no por comportar um número muito menor de presos.
Também é necessário ficar claro que não precisamos ter tantos presos: um dos pontos que se discute é que quase metade da nossa população prisional não foi sequer julgada ainda. Mantida por meses ou anos nessa condição, é submetida a penas privativas de liberdade antes de terem a oportunidade de ser inocentadas pelo juiz ou, talvez, condenadas a penas menores do que as cumpridas.
Por exemplo: alguém é preso em flagrante pelo furto de um shampoo. Fica preso por meses antes de ser julgado. Ao final, sendo de fato condenado, o juiz poderia dar a ele a pena de prestação de serviços comunitários. Mas isso não é mais possível, pois ele já cumpriu pena preso junto com pessoas muito mais violentas do que ele, com consequências sérias por toda a vida desse indivíduo, e de todos ao redor dele.
Assim, não temos que culpar os funcionários das unidades prisionais por, tantas vezes, não preconizarem atividades ligadas ao que é chamado de “ressocialização”. Trabalhar em locais com enorme superlotação representa, para eles, grande carga de estresse, e é preciso lembrar que as condições de insalubridade, ligadas à falta de água potável ou ao mau cheiro de um ambiente mal higienizado por exemplo, atinge os presos, mas também as pessoas que ali trabalham. É ruim para todos. Isso sem contar que quanto maior a pressão causada por fatores como superlotação, mais violento fica o espaço, e mais medo esses agentes sentem de estar ali.
Isso leva, claro, à busca desses profissionais por melhores condições de trabalho, o que tem se dado nos últimos anos (em especial a partir de 2003 em Minas Gerais, quando é criada a carreira de agente penitenciário), a partir da tentativa de se equipará-los às carreiras militares, que são mais valorizadas na área de segurança pública. Dessa forma, cria-se uma carreira que é essencialmente ligada à manutenção da ordem, e não à educação, como é (na teoria) a carreira de agentes socioeducativos.
No mesmo sentido, cria-se uma carreira paralela no sistema prisional, destinada a profissionais que devem tratar da assistência ao preso, sejam médicos ou advogados. Separam-se então as carreiras de segurança e as de assistência, criando definitivamente uma cisão entre as funções, e desobrigando a maioria dos funcionários (agentes penitenciários) das atividades de ressocialização. Em países como os Estados Unidos, por exemplo, essa cisão não existe, e os funcionários que atuam na segurança e na ressocialização são parte de uma mesma carreira.
Falando em ressocialização, e tomando o ato de trabalhar como um dos principais elementos desse processo, vemos na fala de uma das diretoras da unidade uma preocupação em pavimentar esse caminho ao longo do cumprimento da pena, a fim de que as detentas consigam mínimas condições de empregabilidade ao sair. Contudo, percebe-se que muitas delas não conseguem oportunidades lá dentro. Como essas dificuldades repercutem entre as mulheres presas? E como deveriam repercutir no senso comum “daqui de fora”, tantas vezes ávido para que presas e presos trabalhem – até mesmo em condições forçadas – a fim de que “paguem o que devem à sociedade”?
Essa avidez em se pedir que os presos trabalhem para “pagar o que devem” é fruto de uma imensa ignorância sobre como funciona o nosso sistema penitenciário. Hoje, nossa legislação preconiza que o trabalho é direito do apenado. Note bem: direito, não dever. Isso, principalmente, porque trabalhar garante ao preso a redução da sua pena em um dia para cada três utilizados em um emprego. Todo encarcerado quer sair o quanto antes da prisão e, assim, quer uma colocação profissional internamente. O problema é que não há vagas de trabalho para todos.
O preso, pela sua própria condição de preso, não pode imprimir um currículo e procurar por vagas. É preciso que a administração penitenciária dê a ele essa oportunidade. E não existem essas oportunidades. E essa situação, assim como todas as outras do sistema prisional, piora com o aumento exponencial de presos: quanto mais prendemos, mais utilizamos os espaços das prisões para amontoar pessoas, e menos espaços sobram para a instalação de oficinas ou salas de aula.
Uma cena de um documentário incrível chamado “O prisioneiro da grade de ferro”, gravado no antigo Carandiru, é bem ilustrativa nesse sentido. Dezenas de recém-chegados, com as cabeças devidamente raspadas e os uniformes já vestidos, estão sentados, recebendo as instruções sobre como serão seus dias durante o cumprimento da pena. Um homem na frente de todos eles anuncia ter duas notícias, uma boa e outra ruim. A boa, segundo ele, é que há vagas de trabalho dentro da unidade. A ruim, ele anuncia sadicamente, é que não há vagas para todos.
Ressalto, então: trabalhar na prisão deveria ser direito, conforme preconizado na lei, mas direitos que não são para todos não são direitos, são privilégios. Então, trabalhar no sistema penitenciário brasileiro hoje é um privilégio, o que gera enorme disputa entre os presos.
Há grande competição pelas poucas vagas disponíveis. O que acontece é que as pessoas mais vulneráveis entre os presos são as que menos conseguem acessar tais vagas, já que são justamente as que têm menos escolaridade, e são assim preteridas pelos empregadores (na maioria deles, privados). Dessa forma, ao contrário do que diz a funcionária da unidade onde realizei a pesquisa, a possibilidade de “redução de desvantagens” por essa via é bem limitada dentro das unidades prisionais.
Há que se lembrar também que a legislação oferece uma série de vantagens aos empreendedores que atuam em unidades prisionais, como garantia de espaço sem pagamento de aluguel e contratação de mão-de-obra com salários menores que o salário-mínimo. Mas os empregadores deveriam compensar as facilidades a partir da adoção de programas profissionalizantes que ajudassem os apenados a desenvolver habilidades que serão posteriormente valorizadas no mercado profissional do lado de fora. O que acontece na prática, porém, é que os serviços oferecidos nas unidades são, em geral, absolutamente desprovidos de qualquer tipo de educação profissionalizante que possa auxiliar o preso a conseguir um emprego quando acabar de cumprir sua pena, o que reduz ainda mais seu papel no que se chama “ressocialização”.
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Destaco por fim que o salário recebido pelos presos é dividido em três partes. Ele fica com um terço, entregue em geral à família do lado de fora, que controla o cartão bancário em que o valor é depositado. Outro terço fica em uma espécie de poupança, chamada pecúlio, que o preso só poderá acessar quando acabar de cumprir sua pena (a ideia é que sejam suas economias para que ele recomece a vida quando voltar à liberdade). O terceiro lote do dinheiro é destinado ao sustento do preso dentro da unidade prisional. É a verba que deveria custear sua prisão. Saber disso é essencial para não sermos enganados por propostas demagógicas que, vez ou outra, surgem nos parlamentos e nos discursos populistas, para obrigar os presos a pagar, com trabalho, suas despesas. Eles já fariam isso se houvesse vagas de trabalho. O que falta são essas vagas, não leis que tratem do assunto.
Ainda no seu estudo, você observou que as funcionárias da penitenciária detinham certa ingerência no acesso a direitos, como o de manutenção dos vínculos familiares das detentas. Como essa interferência se materializava?
Por definição, as penitenciárias são (ou deveriam ser) locais totalmente controlados, onde um grupo de pessoas (funcionários) teria absoluto controle sobre os fluxos com o lado de fora, ou sobre as atividades e contatos que se dão internamente. É claro que na prática isso não é possível. Então, o que acontece é uma série de negociações diárias entre funcionários e presos para se administrar o ambiente. Uma ação proibida, como fazer tatuagem dentro da cadeia, pode ser tolerada para se evitar um confronto violento, por exemplo. Ou uma delação de preso em colaboração com os funcionários pode gerar acesso mais rápido a uma informação do processo judicial, mas também animosidade entre os presos, em outro exemplo.
Apesar de serem essas negociações, muitas vezes complexas, que gerenciam o cotidiano prisional, não podemos negar que o grupo de funcionários tende a ter maior poder do que o de presos para ditar o andamento da rotina e, como você colocou, o acesso a direitos. E isso se dá à revelia das normas.
Por exemplo: apesar de o regulamento não fazer a previsão de perda de vaga de emprego em função de falta disciplinar, na prática os agentes de segurança podem punir qualquer falta com “tranca”, ou seja, dias em uma cela específica, da qual não se pode sair. Isso, inevitavelmente, gera faltas no trabalho, e pode levar à demissão pelo empregador. Assim, o agente de segurança não define, na teoria, quem acessa as vagas, mas pode manipular as normas para interferir nesse “processo seletivo”. O mesmo se dá com os familiares: a visitação é garantida por lei, mas é possível aos agentes colocarem um preso na “tranca”, situação na qual ele não poderá receber visitas (nem cartas ou telefonemas).
Assim, é na negociação cotidiana, em que as funcionárias têm ao seu lado a possibilidade de manejo de todas as regras da unidade, e os presos se utilizam de dispositivos como ameaças de rebeliões, alianças internas ou denúncias externas de agressões, que se estabelece a sempre instável ordem interna e o acesso a qualquer direito.
Em que pese toda a conjuntura de privações, você conseguiu observar pontos positivos em seu estudo, no sentido da garantia de direitos das detentas?
Não, não vejo nada de positivo na prisão. Já ouvi várias alegações do tipo “aqui elas estão aprendendo a ser mães, já que não cuidaram dos filhos anteriores”, em relação à unidade prisional materno-infantil, na qual os filhos de até um ano “moram” com as mães presas. Supostamente, o Estado ali estaria dando assistência à maternidade. Não me parece, porém, que esse seja o ambiente adequado para isso. Teremos que esperar as mulheres serem presas para que o Estado as ajude e, para isso, prenda também seus filhos recém-nascidos? Por que não fazer isso antes, fornecendo creches, assistência hospitalar, apoio psiquiátrico para a saída de situações de abuso de drogas? Seria a prisão um ambiente adequado para essa assistência?
Já ouvi dizer o mesmo sobre alimentação e até teto: “eles moravam na rua, aqui pelo menos tem teto”. É isso mesmo que queremos para a nossa população? Que só seja possível uma proteção contra a chuva na prisão? Ou que só seja possível ter comida lá dentro? Seria isso dignidade? Não seria esse tipo de pensamento que estaria nos colocando em um ciclo de violência cada vez maior? Então, respondendo a sua pergunta, não, não consigo ver nenhum ponto positivo no fato de supostamente algum direito ser garantido a partir da prisão. Não podemos naturalizar a prisão como instrumento de assistência social aos mais pobres.
Como já pincelado em pergunta anterior, tem ganhado peso em nossa sociedade uma retórica de recrudescimento no trato com a população carcerária. Numa direção oposta a essa onda, você termina o seu estudo propondo uma reflexão sobre a própria existência do instrumento da privação da liberdade como mecanismo de punição. Por que ele se mostra inadequado? E quão difícil e desafiador se mostra esse debate, num tempo de demonização dos direitos humanos e de manifestações reducionistas sobre essa temática?
Vamos pensar na realidade do sistema penitenciário nacional. Não preciso detalhar demais porque é de conhecimento de todos que estamos falando de superlotação, tortura, doenças, falta de comida e violência extrema. Tudo que esse contexto gerou no país até hoje foi mais violência, cujo maior exemplo é o PCC. A maior facção criminosa do Brasil foi criada dentro do sistema prisional por causa de todas essas mazelas, e, também por causa dessas mazelas, tem até hoje o sistema prisional como principal ambiente para recrutar novos membros. Um filme bem interessante para retratar isso é o “Salve Geral”. O nosso sistema prisional não resolve o problema do crime. Ele cria mais crime.
Se o PCC é o retrato mais óbvio disso, outro mais difícil de ser visto é o seguinte: não é possível combater crimes e violências a partir do cometimento de outros crimes e violências. Se o Estado prende as pessoas à revelia da lei e as deixa por meses ou anos nesse ambiente sem julgamento; se esse mesmo Estado, que deveria tutelar aqueles que estão presos, fornece comida estragada e permite que torturas sejam praticadas sob a sua égide; se esse Estado nega, ainda, assistência jurídica e, assim, nega a própria existência da Justiça em seu sentido mais nobre; esse Estado não pode alegar estar agindo para combater o crime. Ele é parte de um ciclo criminoso e violento.
Em outras palavras: não podemos esperar que pessoas tratadas como porcos ao longo de anos saiam desse sistema mais humanos do que entraram. Isso é impossível. Em um país onde as pessoas sonegam impostos porque os consideram injustos, ou compram vagas em filas porque acham longa a espera, dizer que uma pessoa presa injustamente ou exposta a torturas físicas e psicológicas repetidamente precise de respeitar o próprio sistema legal e social que a colocou nesse lugar é, no mínimo, hipocrisia.
E não há nenhuma maneira de se resolver esses problemas sem a redução do número de presos. Os [últimos] números publicados já falam em mais de 800 mil pessoas presas no Brasil. É um sistema impossível de se gerenciar. Países que têm mais presos do que nós, como os Estados Unidos, já perceberam isso, e estão com uma curva descendente, ou seja, hoje já soltam mais do que prendem anualmente, em função de uma série de modificações legais e estruturais. No Brasil, estamos na contramão, e continuamos aumentando o número de presos em um sistema em que já não cabem os atuais. É absolutamente insustentável.
Como você disse, é desafiador o quadro, e isso principalmente porque tendemos a gostar das soluções mágicas, que nos tirariam instantaneamente do fundo do poço. O problema é que a segurança pública é uma das questões mais complexas da atualidade, e exige um projeto de longo prazo para sua solução. Não há atalhos. Esses tendem a nos levar para o porão abaixo do fundo do poço, se essa imagem ajuda a entender a questão. E, na minha opinião, a única forma de se combater essas visões reducionistas é com informação.
As pessoas precisam entender que entre esses 800 mil presos, mais de 40% não foram ainda sequer julgados, ou seja, são inocentes até que se prove o contrário. Além disso, a maioria deles está presa por crimes não violentos. Homicídios, sequestros, estupros e violências desse tipo são minoria no sistema prisional. Esses crimes violentos não são resolvidos, em parte, porque gasta-se muita energia prendendo aviõezinhos, pessoas que cometem pequenos furtos etc. Mudar a estrutura da segurança pública para prender quem mata e não quem furta um shampoo, por exemplo, é o primeiro passo.
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