A crise da república oligárquica – 1889/1930, período conhecido como República Velha – caracterizou-se por agitações político-militares, cujo maior exemplo foi o Tenentismo, até desembocar na Revolução de outubro/novembro daquele último ano. A intelectualidade de então não passaria incólume por essa conjuntura, com a multiplicação de obras literárias, artísticas (Semana de Arte Moderna, 1922), históricas etc, cada uma traduzindo ao seu modo verdadeira sede de redescoberta do Brasil, em busca das raízes do nosso atraso e dos caminhos para a sua superação.
Tamanha fermentação de ideias ensejou o surgimento daquela que até hoje é a mais importante iniciativa editorial na área dos estudos brasileiros: a coleção Brasiliana-Bibliotheca Pedagógica Brasileira, da Companhia Editora Nacional (São Paulo), significativamente iniciada naquele mesmo ano de 1930. A editora tinha sido fundada em 1925 pelo escritor e homem público Monteiro Lobato (1882/1948), para quem um “país se faz com homens e livros”, e por seu sócio e continuador no empreendimento, Octalles Marcondes Ferreira (1901/1973). Como editores, a coleção teve dois homens de saber – primeiramente, o sociólogo e educafor Fernando de Azevedo (1894/1974), seguido, a partir de 1956, pelo historiador Américo Jacobina Lacombe (1909/1993). Foram, ao todo, 387 volumes, mais 26 da série Brasiliana-Grande Formato, reunindo relatos de viajantes, naturalistas e etnólogos estrangeiros que percorreram o Brasil dos séculos 16 a 19; biografias; tratados de geografia física e humana, economia, monografias regionais, obras sobre os Brasis-Colônia, Império e República. (Na senda aberta por essa Brasiliana, viriam depois outras duas preciosas coleções: Documentos Brasileiros, da editora carioca José Olympio, e Reconquista do Brasil, da mineira Itatiaia.)
Pois bem, agora na virada de 2018 para 2019, as edições do Senado Federal (CEDIT@senado.leg.br, ou http://www.senado.leg.br/publicacoes/conselho), sob o comando desse incansável amigo dos bons livros que é Joaquim Campelo Marques, nos brindam com dois grandes lançamentos. O primeiro deles é a coleção Brasiliana Breve, com 20 volumes, a qual coloca ao alcance dos leitores de hoje títulos consagrados da original, tais como como o Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa, escrito em 1587, pioneiro estudo sistemático da terra e das gentes; a História geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816/1878), o visconde Porto Seguro, diplomata e fundador do estudo ‘científico’ da nossa história; Formação da sociedade brasileira/Populações meridionais do Brasil, do sociólogo e jurista fluminense Oliveira Viana (1883/1951); Descobrimento do Brasil e povoamento — mais uma ‘seleta’ –, do cearense Capistrano de Abreu (1853/1927), outro eminente precursor da historiografia nacional; História das bandeiras paulistas, de Afonso d’Escragnolle Taunay (1876/1958); e Através da Bahia, excertos da Viagem ao Brasil, 1817/1820, dos naturalistas bávaros Carl Friedrich Philipp von Martius (botánico e antropólogo, 1794/1868) e Johann Baptist von Spix (zoólogo, 1781/1826), membros da missão científica e artística austro-alemã que acompanhou a arquiduquesa d’Áustria, dona Maria Leopoldina (1797/1826), futura imperatriz-consorte do Brasil, para onde viera a fim de se casar com o princípe-herdeiro, depois imperador dom Pedro I (1798/1834). Incorpora, também, estudos recentes, que não constam da relação original, mas ajudam a iluminar, sistematizar e compreender episódios e figuras marcantes do multissecular painel histórico traçado pela Brasiliana, prolongando-se até a atualidade; são eles: Atuação da Inquisição no Brasil, organizado pelo historiador e filósofo Antonio Paim; Nossa primeira experiência de governo representativo. idem; Personalidades políticas (Independência e Império, verbetes), idem; Castilhismo: uma filosofia da República, do historiador das ideias políticas Ricardo Vélez Rodríguez, atual ministro da Educação; Primórdios da questão social no Brasil e A Frente Liberal e a democracia no Brasil, ambos do advogado e educador Arsênio Eduardo Correia; O estoque brasileiro de capital segundo sua origem, do jornalista e economista Gilberto Paim (1919/2013); e Síntese da trajetória institucional da República brasileira, de Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodríguez e Leonardo Prota (1930/2016) – este último, sacerdote católico, estudioso das filosofias nacionais em perspectiva comparada e antigo professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Antonio Paim, pensador liberal baiano admiravelmente produtivo nos seus 92 anos de idade, não apenas coordenou a presente seleção da Brasiliana como produziu o segundo “presente” da editora do Senado aos amantes da cultura brasileira: o guia de leitura Brasiliana Breve: uma coleção para difundir a historiografia nacional. Em pouco mias de 100 páginas, ao inacreditável preço de R$ 8,00, ele mobiliza a sua notável erudição, aliada ao talento jornalístico para se comunicar com leitores de qualquer grau de instrução, para esclarecer resumidamente o sentido da nova coleção e os principais aspectos das 20 obras selecionadas. Achei extremamente úteis, por exemplo, sua explanação de como Varnhagen se valeu de relatos de viajantes e outras fontes coloniais para o seu modelo pioneiro da historiografia brasileira (capítulos II e III); e também o primor de síntese que é o capítulo IV, breve roteiro da evolução política e cultural dopaís desde a Colônia até hoje.
É claro que selecionar sempre implica excluir. Assim, as escolhas, seus critérios e resultados seriam, certamente, tão numerosos e variados quantos porventura fossem os estudiosos encarregados de desenvolver, em separado, diferentes versões da Brasiliana Breve ( ** ). Decerto, todo fá da coleção original tem seus volumes prediletos, e, no meu caso, nenhum deles foi contemplado, a saber: o volume 243, de José Antonio Soares de Sousa, A vida do visconde do Uruguai, 1807/1866, biografia de Paulino José Soares de Sousa, diplomata, membro do Conselho de Estado, senador do Império, autor de seminal Ensaio sobre o Direito Administrativo, a quem Paim considera um dos estruturadores do sistema representativo brasileiro do século 19, cuja evolução gradual no sentido de um lento aperfeiçoamento e uma progressiva ampliação do eleitorado, no marco da monarquia constitucional, viria a ser interrompida com o advento da República. Ou então o volume 340, do historiador mineiro João Camillo de Oliveira Torres (1915/1973), Os construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador brasileiro. Ou ainda o volume 136, biografia do político e escritor alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos (Tavares Bastos, 1839/1875), adversário liberal do conservador Paulino, escrita pelo seu conterrâneo Carlos Pontes. Da série Grande Formato, sou particularmente afeiçoado aos volumes 6 — Tomas Ender, pintor austríaco na corte de d. João VI no Rio de Janeiro: um episódio da formação da classe dirigente brasileira, 1817/1818, de J. F. de Almeida Prado — e 11, de José Honório Rodrigues (1913/1987), brilhante herdeiro de Varnhagen, Teoria da história do Brasil (5ª edição, 1978).
Mas, o importante, mesmo, é que os 20 tomos da Brasiliana Breve, acompanhados do precioso trabalho introdutório de Antonio Paim, possibilitarão que novas gerações de leitores tomem posse desse monumento à nossa memória histórica e cultural, instigando a sua curiosidade para conhecer os demais itens da coleção, hoje felizmente digitalizados e, portanto, ao alcance dos internautas, graças à iniciativa da Fundação Biblioteca Nacional, no sítio eletrônico www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao.
Este artigo também será publicado na revista Boa Vontade, da LBV, onde Paulo Kramer mantém a coluna Congresso em Pauta
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