Bajonas Teixeira de Brito Junior*
Se o presidente do Inep fosse um samurai, talvez tivesse optado pelo harakiri. Mas ele não é, e sua opção foi muito menos dramática. Como representante de uma das áreas mais importantes do Ministério da Educação, preferiu decidir que está tudo bem. Está “tudo certinho” com o Enem. Uma decisão que, por si só, gerou um novo episódio desastroso ao tentar encobrir com saliva o tamanho do prejuízo. Além de tudo, deu provas de uma soberba muito autoritária ao pretender impor o seu “tudo certinho” quando todo mundo sente que está tudo errado.
Não chega a ser tão exótica essa atitude, já que o próprio ministro da Educação andava meio vaporoso. Como é tão comum no Brasil, o ministro, que ainda ontem alardeava sua opinião contrária ao entendimento do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre uma obra de Monteiro Lobato, recolheu-se logo que estourou a bomba do Enem em uma dimensão que só existe neste país, na qual o indigitado não é visto, ouvido, nem noticiado. Assumindo a forma imaterial, o ministro demorou a dar as caras e, quando o fez, foi para minimizar o problema. Ou seja, para dizer que não há responsabilidade.
Isso se explica certamente pela transferência de vícios próprios à política para a administração. Exatamente porque a administração pretende, ela também, gozar de todos os privilégios, prerrogativas e truques dos políticos. Vimos recentemente um caso muito interessante, que foi a conversão do ex-senador Arthur Vigílio Neto. Ele que era tão loquaz, que detinha umas das línguas mais afiadas do Congresso, de repente, e por coincidência logo depois dos escândalos em que se viu envolvido, optou pelo voto de silêncio. Esse silêncio, contudo, foi cobrado estridentemente nas urnas, e, como resultado, Virgílio foi premiado com um “Ex”. Agora é ex-senador.
Mas a administração não se arrisca em eleições. Por isso mesmo, é ainda menos aceitável que se arme com as técnicas da política. O ministro tem que falar. A situação, que a OAB classificou como um desastre é muito séria. O que está em questão, além dos muitos milhões investidos, são os prejuízos de diversas ordens causados a quase três milhões e meio de estudantes no país inteiro. Silenciar nessas circunstâncias seria dar provas de arrogância autoritária. Se é que já não temos provas suficientes.
Pois é. O que não faltou foi arrogância e autoritarismo em todo o processo. Primeiro, veio a proibição do uso de lápis, borracha, apontadores e relógios. Como fazer rascunhos sem lápis? E como fazer uma prova sem rascunhos? E como controlar o tempo sem relógio? O mais constrangedor é constatar que essas medidas que se pretendem justificadas por razões de segurança, encobrem o óbvio: que as falhas de segurança se devem ao próprio INEP, não aos estudantes. O vexame da anulação do último Enem (2009) foi de única e exclusiva responsabilidade do MEC.
Com uma carga de violência associada à intimidação, a arrogância do MEC conseguiu se superar logo em seguida: a manifestação do MEC através do twitter vazada em termos totalmente inapropriados. “Alunos que já ‘dançaram’ no Enem tentam tumultuar com msgs nas redes sociais. Estão sendo monitorados e acompanhados. Inep pode processá-los”.
E a tudo isso ainda se soma a violência física, como se pôde constatar nas imagens de um estudante recebendo tratamento brutal de seguranças no Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte. Fica claro que não houve, da pauta do MEC, ou de seus prepostos, qualquer cuidado em instruir as instituições, que não abriram as portas de suas unidades gratuitamente ao governo federal, a respeito do tratamento a conceder aos estudantes. O episódio sequer foi notado pelo ministro, que não disse uma palavra sobre ele.
E, na verdade, tudo devia ser muito diferente: o ministro da Educação já deveria ter vindo a público pedir desculpas aos milhões de estudantes prejudicados. A tensão gerada não pode ser apagada com negativas. Estudantes que agora caminham para o encerramento do ano letivo, são jogados num moinho de preocupações e medos que terão certamente impacto negativo sobre seu rendimento escolar.
Mas, sobretudo, é o enorme prejuízo para o Enem como tal, para a sua adoção como substituto do vestibular, que concede à situação o estatuto de tragédia. Muitos milhões sacados do erário público foram injetados nele durante esses anos, e os que o administram têm que responder por cada centavo que agora se vê desperdiçado, pela perspectiva de desmoralização do exame, e pelos prejuízos aos estudantes. Pelo que consta das matérias na internet, a gráfica que venceu a licitação recebeu R$ 68,8 milhões e as instituições responsáveis pela aplicação da prova R$ 128,5 milhões.
A sucessão de mancadas no Enem faz do MEC hoje o estudante mais problemático do país, como o menor aproveitamento, o maior desinteresse em aprender com os próprios erros, e, o que é pior, com a mais intrépida disposição para farrear com o dinheiro público.
O rigor com os estudantes, a defesa implacável das prerrogativas ministeriais, as ameaças delirantes, seguem de mãos dadas com as tentativas de escapar às responsabilidades. E, como era de se esperar, também com sucessivas inverdades nas declarações do presidente do Inep, que a imprensa vai apontando.
Nem vamos comentar aqui os erros contidos nas questões da prova, a linguagem deficiente em algumas delas, as duplicidades desconcertantes e outras mazelas que já foram objeto de muitos comentários. Fica aqui só a alusão. Nos contentaremos com o quadro geral.
E esse quadro é muito lamentável. Na carta de despedida aos funcionários do Inep, o presidente que caiu com o vazamento das provas em 2009, escreveu:
“Entretanto, nenhum problema por nós enfrentado nesses últimos quatro anos se compara, em termos de gravidade, ao furto da prova do ENEM e ao consequente adiamento do exame. Na minha opinião, em grande parte pelo fato de o Novo ENEM ser um projeto estratégico para a educação brasileira, em torno do qual foram geradas enormes expectativas.”
De fato foram geradas enormes expectativas, e, também, foram gerados enormes gastos. Para quê? A princípio para encontrar uma modalidade de concurso que substituísse o famigerado vestibular, carcomido por décadas de críticas e que, por fim, deixou de ser obrigatório com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) . Uma coisa, porém, que ficou evidenciada com a nova prova no ano passado, foi a tendência, que só deve crescer, de que grandes universidades desistam da aplicação do modelo. E em torno dele dois fatos parecem que estão se cristalizando.
O primeiro é que ele mantém a dominação dos cursinhos, como se vê pelos comentários das questões na internet, em que pontificam exclusivamente professores dos cursinhos. Aqui nada muda, portanto. A lenga-lenga sobre estimular pensamento crítico, atitude reflexiva, etc., vê-se que não passou de blá-blá-blá. O segundo fato que se configura é que o sistema parece funcionar gerando transferência velada de recursos públicos para as instituições particulares de ensino superior, uma vez que se vêem dispensadas dos encargos de promover o próprio processo seletivo.
Uma nova forma de transferência de renda da educação para as instituições privadas fica instituída assim. Qual a contrapartida oferecida pelas particulares? Até onde vejo, nenhuma. O planejamento das provas, a confecção do modelo, todo o processo administrativo, logístico e material, enfim, todos os gastos, são arcados pelo poder público. O que resta às instituições privadas? Só alugar o espaço como “postos de aplicação” para que o MEC realize as provas que servirão para elas mesmas, faculdades particulares, selecionarem uma parte significativa de seus estudantes. Claro, apenas uma parte, porque para as instituições particulares não é interessante deixar de fora o estudante que não foi bem colocado, ou que não fez o Enem, se ele tem numerário para remunerá-la. Seria um crime. O Enem é uma ficção útil que se dão o luxo de utilizar como bem lhes aprouver.
Claro que realizar um “vestibular” nacional, mesmo com todo apoio das particulares, é tarefa extremamente difícil. Mas essa dificuldade não isenta das responsabilidades. Quem tem dó de angú não deve criar cachorros. Se a tarefa é maior, os louros também crescem, mas na proporção direta das responsabilidades e, portanto, dos riscos. Veja-se a necessidade de checagem prévia das provas, que qualquer professor minimamente preparado faz antes de aplicá-las. Tudo indica que esse detalhe foi esquecido pelo Inep. Seu presidente afirmou inicialmente que não seria responsabilidade sua. A imprensa o desmentiu citando o edital em que estava prevista a revisão por parte de funcionários do Inep.
A Defensoria Pública da União (DPU) já está recomendando a anulação da primeira prova. A Justiça Federal do Ceará acaba de determinar a suspensão do Enem, decisão que tem efeito para todo o país, embora sujeita a recurso. A tensão que tudo isso criará sobre os estudantes, os prejuízos para o aproveitamento do bimestre letivo deste final de ano, o descrédito em que se lança um projeto muito caro, o incentivo ao aumento das abstenções, que já chegaram a quase 30% este ano, tudo isso faz pensar no triste papel da “gerência pública” nesse processo. (Sim, a administração agora quer ser chamada de “gerência”, como se um ministério fosse uma churrascaria ou um bingo). E faz pensar também, sobretudo, nas responsabilidades.
Quem desperdiça dinheiro público, que poderia inclusive ser utilizado até na… educação, não pode se esquivar. Muito menos é possível aceitar desculpas esfarrapadas, versões que duram poucas horas até serem desmascaradas e, o que talvez seja mais grave, a omissão do ministro desmaterializado da Educação que, ao vir à público para dar explicações, repete no essencial o que disse o presidente do Inep: está “tudo certinho”.
*Doutor em Filosofia, professor universitário e autor do livro “Lógica do disparate”. É pesquisador da Cátedra Unesco de Multilingüismo Digital, da Unicamp, e coordena a revista eletrônica Revista Humanas
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