Paulo Kramer*
"Para que insistir em velhos erros se há tantos erros novos ainda por cometer?" – Bertrand Russell
Dias antes do segundo turno da eleição presidencial, quando já era inteiramente conhecida a cara da nova Câmara dos Deputados, e a composição definitiva do futuro Senado dependia apenas de uma ou outra definição da disputa pelo governo de alguns estados, o cientista político Rogério Schmitt, da Tendências Consultoria, esteve em Brasília a convite do Comitê Estratégico de Relações Governamentais e Análise da Conjuntura Política da Câmara Americana de Comércio (Amcham) para uma palestra sobre as relações Executivo/Legislativo a partir de 2007 – qualquer que viesse a ser o vencedor da corrida ao Palácio do Planalto.
Os cenários políticos apresentados por Schmitt tomaram como ponto de partida uma analogia com a noção mais conhecida, de fundamentos macroeconômicos: aqueles indicadores de inflação câmbio, relação dívida/PIB, balanço de pagamentos, taxa de juros etc., que necessariamente devem ser levados em conta para se projetar a trajetória de crescimento do PIB.
Considerei muito útil esse paralelo, e agora, reeleito Lula, parece-me que Schmitt esteve correto em prever que os fundamentos políticos – no caso, a correlação de forças governo/oposição no Congresso, produzidas pelas urnas de outubro – tendem a favorecer, mais que dificultar, a governabilidade no segundo mandato.
Aos números, portanto.
Na Câmara, a surpresa causada por duas expectativas afinal não materializadas joga a favor do presidente: nem seu partido encolheu tanto quanto os escândalos em série do último ano e meio faziam prever, nem as duas principais siglas oposicionistas lograram traduzir esse protagonismo em aumento das respectivas bancadas.
O número de cadeiras do PT caiu das 91 conquistadas em 2002 para as 83 de agora, com as perdas em grandes centros do Sul de do Sudeste sendo parcialmente compensadas por ganhos no Norte e no Nordeste, um ‘ricochete’ da esmagadora votação que Lula recebeu por lá.
Já o PSDB e o PFL ficaram, respectivamente, com 66 e 65 deputados federais, e o encolhimento pefelista foi particularmente significativo, quando lembradas as 84 cadeiras trazidas pelo pleito de 2002.
A bancada formada pelos principais partidos da base governista (PT, PMDB, PP, PF, PSB e PTB) somará, na nova legislatura, 285 deputados. Se a eles forem acrescentados aliados de menor porte, como PCdoB e PRB, o governo Lula deverá, no mínimo, contar com algo como 313 deputados, ou 61% da Câmara, mais, portanto, que os três quintos requeridos para a aprovação de emendas constitucionais.
No Senado – já consideradas circunstâncias como a saída dos maranhenses Roseana Sarney e Édison Lobão do PFL, ambos com provável destino ao PMDB; a volta do peemedebista capixaba Gerson Camata, retomando a cadeira que vem sendo ocupada por seu suplente, o tucano Marcos Guerra; a efetivação do também peemedebista Neuto de Conto, suplente do tucano catarinense Leonel Pavan, eleito vice-governador; e a chegada de José Nery Azevedo, do Psol, suplente da senadora petista e governadora eleita do Pará, Ana Júlia Carepa -, a situação não é tão confortável. Ainda assim, com 43 governistas e 39 oposicionistas, o Planalto terá maioria, e deverá caber ao PMDB de Renan Calheiros e José Sarney (19 senadores, a maior bancada) a presidência da Casa.
Trocados em miúdos, todos esses fundamentos sugerem que Lula II não deverá enfrentar resistências incontornáveis para a retomada da agenda de reformas macro e microeconômicas, sem as quais o país não redescobrirá a senda do crescimento a um ritmo superior aos 2,5% anuais de hoje em dia, insuficientes para acomodar as necessidades e aspirações do milhão e meio de jovens que o mercado de trabalho recebe todo ano.
E há um importante incentivo político por trás disso: como é provável que o sucessor de Lula pertencerá à atual oposição, é do interesse desta colaborar para aprovar, a partir de agora, mudanças impopulares como as reformas previdenciária e trabalhista, indispensáveis para o sucesso econômico sustentado do governo a ser eleito em 2010.
Entra em cena o imponderável
Já me preparava para concluir o artigo com este róseo horizonte quando a secretária me sussurrou: "Está aí fora aquele senhor que se diz primo de um personagem de Nelson Rodrigues; ele insiste em conversar com você sobre o ‘segundo lulato". Suspirei conformado e mandei entrar o doutor Imponderável de Oliveira, parente próximo do Sobrenatural de Almeida.
Sentou-se e, como quem está acostumado a ler pensamentos alheios, foi direto ao ponto. "Vocês, cientistas políticos, teimam em me excluir de suas projeções. Seu colega Schmitt, por exemplo, foi impecável na apresentação dos fundamentos, mas esqueceram vocês que se trata de Lula e do PT?" Para recuperar a tranqüilidade, repeti aquele pedido que os psicanalistas adoram fazer: "Você poderia ser mais claro?" (Afinal, prever o imprevisível é uma impossibilidade lógica e prática, ou não é?)
O visitante não se fez de rogado e disparou a perguntar – e responder por si mesmo – questões relativas à eterna fonte de conflitos e incertezas deste governo: a cisão hamletiana entre as ideologias dominantes no seio da companheirada, de um lado, e o imperativo nacional de fortalecer a democracia representativa e colocar a máquina do Estado para funcionar a favor, e não contra, o mercado, de outro.
"Ora, Paulo, você sabe que fundamentos objetivos só geram os efeitos esperados quando a realidade respeita a regra do ceteris paribus: A acarretará B, se e somente se todas as demais condições não forem contraditadas pelos fatos subseqüentes. E não dá para desconsiderar a longa lista de contradições exibida pelo governo desde que tomou posse, em 2003. Bastam os exemplos que lhe vou dar.
"Nos últimos quatro anos, nem um miserável dólar de investimento privado novo em geração de energia elétrica? Apesar de aprovadas há mais de um ano e meio, as Parcerias Público-Privadas (PPP) não saem do papel? A resposta está na incerteza dos marcos regulatórios, agravada por um projeto governamental de reestruturação das agências reguladoras, hoje dormente nos desvãos da Câmara, mas que, de qualquer modo, fortalece o poder político do governo sobre decisões bilionárias pendentes de planejamento de longo prazo, o que significa submetê-las às flutuações do ciclo eleitoral". Tive que concordar. Mesmo o país vindo a crescer na toada raquítica dos últimos tempos, o apagão será líquido e certo a partir de 2008/9.
No mesmo fôlego, continuou: "Por que tanta insistência em ressuscitar propostas de controle da imprensa sob o pretexto de democratizar os meios de comunicação? Por que, nos últimos dias, essa provocação gratuita ao Legislativo, ao Judiciário e à opinião pública, implícita em especulações que circulam como balões de ensaio sobre a possibilidade de uma anistia presidencial a José Dirceu? Por que esse enternecimento de palanque com o plebiscitarismo patrimonialista do venezuelano Hugo Chávez? Ora, porque a burocracia petista, simplesmente, jamais se converteu ao que o filósofo e analista político liberal Antônio Paim, em obras como O socialismo brasileiro II (edição do Instituto Teotônio Vilela) e Para entender o PT (Londrina: Instituto Humanidades, 2001), denomina cláusulas pétreas da democracia representativa. Nenhuma das facções que atualmente (des)integram o Partido dos Trabalhadores, inclusive o Campo Majoritário, constelação de tendências encabeçada pela Articulação, de Lula & Dirceu, jamais assumiu compromisso inequívoco com o regime da representação, avesso à sistemática cooptação mediante a qual o partido busca se manter no poder montado no binômio aparelhamento do serviço público/controle dos movimentos sociais, tudo em nome da ‘democracia participativa’. Isso para não mencionar as correntes abertamente hostis ao pluralismo político-ideológico e às eleições gerais, periódicas e competitivas como único método legítimo de conquista do poder, caso da Democracia Socialista, do aliado do MST e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário Miguel Rossetto. A propósito, como explicar mensalões e dossiês sem referência a essa incompatibilidade de fundo com a ‘democracia burguesa’?"
Esse especial talento petista
As indagações retóricas não paravam!
"Como é possível que intelectuais petistas com influência nos rumos da política externa mal consigam disfarçar seus esgares de desprezo ideológico em face do vitorioso modelo chileno, caracterizado por baixa carga tributária (24% do PIB); modesta relação dívida pública/ PIB (32%, contra 50% do Brasil); apenas dois impostos (sobre a renda, com alíquota máxima de 42%, e de valor agregado, com alíquota única de 18%); vigésimo segundo lugar no ranking mundial da competitividade (Brasil: quinquagésimo sétimo), crescimento médio anual de 5;9% desde 1986 (Brasil? 2,4% no mesmo período, e olhe lá!); taxa básica de juros de 1,75%; e risco-país na casa dos 70 pontos (o que faz do Chile a única nação sul-americana detentora do investment-grade, a chave de ouro para investimentos produtivos externos maciços? Dá para acreditar que essa mesma intelligentsia baba de inveja do confrontacionismo oco, de fôlego curto, da moratória argentina?
"Por que a volta do fogo amigo contra a ‘era Palloci’, disparado agora pelo ministro Tarso Genro, em testemunho da volúpia petista de chutar companheiro caído em desgraça, ao mesmo tempo que conclama os partidos da oposição a uma grande concertação nacional?
"Não é significativo, aliás, que o ex-ministro da Fazenda, a quem as pesquisas de avaliação encomendadas pelo Palácio do Planalto apontavam consistentemente como o melhor quadro do primeiro escalão – provavelmente por sua segura distância da mentalidade petista média, quer pelo discurso econômico, quer pelas maneiras corteses – tenha perdido a credibilidade e o cargo em razão de uma recaída em métodos persecutórios stalinistas, quando da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo?
"Por que, contra toda e qualquer evidência, os burocratas e boa parte da militância do partido preferem aferrar-se a preconceitos de embolorada estimação a admitir que foi a política macroeconômica herdada do fernando-malanismo e escrupulosamete aprofundada pelo eixo Antonio Palloci/Henrique Meirelles que dissolveu o grande medo inicial do mercado financeiro, possibilitando a queda gradual da Selic, economizou recursos para financiar o Bolsa-Família, enfim, alimentou a sensação de relativo bem-estar econômico, principalmente nas camadas mais humildes, fatores, todos eles, cruciais para a reeleição?
Quase sem respirar, emendou: "Uma última coisa sobre o Palloci. Quando, pouco antes de sua derrocada, o ex-ministro mobilizou os argumentos de autoridade de Delfim Netto para defender perante Lula a proposta de déficit nominal-zero, um rígido calendário de corte progressivo dos gastos de custeio da máquina administrativa, do que a quintessencial petista Dilma Rousseff rotulou o esquema? De ‘primitivo’! E agora, sem Palloci, por que Delfim continua a ser prestigiado pelos conselhos planaltinos e a encantá-los com sua presença inteligente? Bem, se depender do PT, a resposta terá a ver menos com a redução dos custos burocráticos – afinal, em quatro anos, o dízimo partidário engordou bastante com aumento do número de funcionários da administração federal, de pouco mais de 800 mil, para quase 1 milhão – e mais com o fascínio da memória do milagre econômico, movido à estatização, da ditadura militar, por mais que o santo maior daquele milagre tente explicar a seus novos companheiros que a conjuntura da época era totalmente outra, com abundância de petrodólares reciclados no euromercado e prontos para irrigar projetos gigantescos de substituição de importações calçados na ‘tríplice aliança’ de empresas estatais, transnacionais e grandes grupos privados nacionais. Dilma, Genro & cia. tentam recauchutar seu saudosismo colando-lhe a etiqueta de desenvolvimentismo."
E por muito mais tempo teria monologado o meu visitante, não lhe cortasse eu o discurso em nome do prazo já estourado para entregar este ensaio. Pressuroso, abracei-o, recomendei-me ao primo Sobrenatural e o acompanhei até a saída. No corredor, ainda encontrou forças para advertir: "Pelo menos a primeira metade do ano que vem será um repeteco de lua-de-mel, acalentada pela votação expressiva de Lula no segundo turno; mesmo assim, não dá para prever o impacto político de possíveis descobertas da sindicância, na Justiça Eleitoral, sobre o dossiê freudiano. O caldo vai esquentar mesmo em 2008, com as eleições municipais antecipando a largada para a corrida presidencial dali a dois anos. Nessa hora, você voltará a ouvir sobre o papai aqui…"
Já dentro do elevador, berrou: "Não me subestime, nem despreze o talento petista de transformar triunfo eleitoral em atrito político e decepção econômica!"
Política e economia são, fundamentos à parte, arenas psicológicas e, portanto, sujeitas a volatilidade, sobretudo em um Brasil de regras do jogo político instáveis porque ainda sujeitas a personalismos variados.
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