Sandra Franco*
No último dia 26 de setembro, o secretário estadual de Saúde do Rio de Janeiro, Sérgio Cortês, instalou o gabinete da crise no Hospital de Saracuruna, em Duque de Caxias, baixada fluminense, sob a alegação de que “tem tolerância zero para erros com pacientes”.
Tal medida seria uma reação a fatos ali ocorridos recentemente. No último dia 19 de setembro, um jovem de 21 anos, ferido em uma queda, peregrinou durante sete horas por cinco hospitais, entre eles o de Saracuruna, em busca de atendimento. No dia 23 de setembro, uma idosa foi colocada viva em um saco plástico dentro da câmara frigorífica e encontrada pela família no necrotério da unidade. Por fim, uma mulher chegou com um idoso ao hospital, no dia 25, aguardou uma maca por mais de 15 minutos e alega ter seu pai morrido à espera de socorro.
Outras consequências imediatas dessa série surreal de desastres foram a exoneração do diretor do referido hospital, a demissão de um médico e de uma enfermeira. Apesar de a medida, segundo o secretário, ter a finalidade de avaliar os responsáveis nos casos recentes de mau atendimento a pacientes nessa unidade de saúde, a conduta pode ser classificada como isolada e midiática. Tanto quanto se pode classificar um projeto que tramita no Congresso Nacional, cuja proposta seria a de modificar o Código de Ética Médica para “agravar” a penalidade dos médicos “infratores”.
A priori, é preciso lembrar que infração ética difere de infração penal ou verificação de culpa, em seu sentido stricto sensu, no âmbito civil. Além disso, é importante ressaltar que nem sempre um resultado negativo no campo da saúde é consequência de falha na conduta médica – objeto ontológico de verificação de materialização de infração (ou não) ética.
Não se deseja entrar no mérito da investigação de responsabilidade deste ou daquele profissional da forma como propõe, por exemplo, o senhor secretário da Saúde do Rio de Janeiro. Apenas para dar alguns dados sobre a saúde no estado, assessores da secretaria carioca admitem haver um déficit de neurocirurgiões no Rio. Da mesma forma, o Coren – Conselho Regional de Enfermagem – aponta para a constatação de haver um enfermeiro em unidades de saúde que exigiriam ao menos 15 desses profissionais.
Destarte, abre-se o questionamento acerca da duvidosa eficácia em torno do proposto “agravamento” das penalidades impostas às infrações éticas cometidas pelos médicos.
Em sendo a conduta médica avaliada no campo da ética não é possível dissociá-la, dentro da valoração do jusnaturalismo, da escola de formação do médico, sua residência (especialização), suas necessárias atualizações científicas, sua relação com o paciente, com a sua equipe de enfermagem, enfim, sua conduta no exercício de sua profissão. E nem deixar de lado a questão profissional dentro de uma estrutura de estabelecimentos de saúde sem equipamentos, sem equipe de apoio, sem infraestrutura física, sem leitos, sem vagas na UTI e sem medicamentos.
Interessante julgar o compromisso social e ético dos profissionais da saúde isoladamente. Difícil acreditar que o “agravamento” das penalidades inibiria o malfadado erro médico; da mesma forma que o “gabinete de crise” certamente não mudará a realidade da saúde no Rio de Janeiro.
Nesse mesmo raciocínio, se nem mesmo o positivismo das normas penais são capazes de garantir à sociedade o caráter sócio-educativo das penas, quais fundamentos a sustentar o projeto de lei nº 437/2007, recebido pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, que o salvaria de ser mais um factóide político?
A redação do projeto de lei modifica, em dois aspectos, o padrão atual de sanções previstas no artigo 22 da Lei nº 3.268/1957, que trata sobre os conselhos de Medicina. Propõem-se penas intermediárias entre a de suspensão temporária da atividade profissional e a de cassação definitiva do diploma. E, de forma um tanto contraditória, permite que o médico punido nos casos de imperícia possa retomar a atividade após treinamento.
Longe de se isentar os maus profissionais da saúde de suas responsabilidades, o médico, em meio a esse contexto de má gestão de recursos e descaso com direito básico da população, é apenas a “ponta” de interesses (ou desinteresses) que norteiam o sistema de saúde brasileiro. Sem dúvida, não é agravando penalidades que esses problemas se resolverão.
Apenas para variar, poderiam os políticos e gestores públicos tratar as causas das falhas do sistema de saúde e não apenas das consequências?
* Consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico Hospitalar da OAB/SP e Presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde
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