Numa outra resenha que fiz para Marcelo Mirisola, quando este lançou suas famosas crônicas censuradas com o título O Homem da Quitinete de Marfim (Rio, Record, 2007), escrevi o seguinte, sete anos atrás: eu podia dizer que Mirisola é o escritor mais original que vi surgir em trinta anos de vivência e convivência com várias gerações de poetas, prosadores, nacionais e estrangeiros, amadores e profissionais, e como tal ele ocupa um estatuto único em nossas letras.
Podia, digo e agora repito, sete anos depois: só que não parece fazer nenhuma diferença para os picaretas de plantão nas letras, todos felicíssimos dando e recebendo mutuamente jabutis, paratys e portugáis telecom, no circuito fechado da mediocridade que não só se generaliza como universaliza. Na próxima encarnação farei curso de emburrecimento intensivo, juro. O ibope é garantido!
Eu podia dizer que Mirisola inova quando assina a orelha do próprio livro, mas seria mentira, porque depois de 12 livros e 17 anos (é isso mesmo?) de carreira, ninguém ignora sua arrogância, seu humor perverso, sua crueldade insensata e gratuita, mas ninguém parece perceber – ou se percebe, não diz – que é ele quem se fode, se crucifica, se autoimola, é só ele, sempre ele. E encarando a coisa numa boa. Com toda filosofia. Um filósofo do insuportável e do indizível, é verdade, mas sempre e acima de tudo um filósofo.
Então se ninguém se machuca, nem se prejudica, qual é o grilo? O grilo é que genialidade não se premedita. Quer dizer, sua poética suicida se consuma na ética mirisoliana, ele e sua Uzis, seu tacape envenenado, seu priapismo metafísico. Com a novidade que, em matéria de amor, Mirisola está sofrendo menos e deliberadamente rindo mais. Se tornando mais sábio.
De forma que ele me vem agora com esta Hosana na Sarjeta, um romance sobre a arte dos desencontros (dos quais ele também é mestre), mas acima de tudo um tremendo livro de humor que devorei num pincho, morrendo de rir, me deliciando a cada parágrafo. Há um trecho lapidar que eu tenho que reproduzir:
“No réveillon, o Rio de Janeiro todo cabe dentro do Santos Dumont, o resto vira Mongaguá. Culpa nossa. Nossa, da gente, ninóis paulistas/paulistanos. O paulistano tem esse dom de levar as praias oleosas e a feiúra da Baixada Santista pra onde vai. No final do ano, seja dinamarquês, gaúcho, cearense, ou até mesmo carioca, tanto faz, no réveillon vira tudo bebedor de garapa. Ipanema se transforma em Barueri, as mulheres bronzeadas empalidecem, e todos, sem exceção, são paulistas. Quando Deus fez o mundo, deve ter olhado para Mongaguá e pensado: é aqui. E carimbou a Baixada na alma dessa gente que não é caipira, não é praiana, não é metropolitana. Não é nada. Basta fazer uma viagem de metrô. Di terminal do Jabaquara ao Tietê. Reparem. A cara amarrada. A mesma tristeza, o viço perdido. A deselegância nada discreta da tiazona crente vestida de urubu. Apenas o barulho do vagão, nenhum sinal de vida. Inventamos a embolia. O câncer do pulmão. A neblina eterna cobrindo a Serra do Mar. Hebe Camargo. O bermudão, o Rider, a camiseta regata. E Deus, só pra sacanear, dividiu a conta no cartão em mil parcelas a perder de vista e sentenciou: Agora vão pra Monguagá e não me encham o saco.” (pag 81)
O enredo desse Hosana? Bom, é o de somenos: as aventuras de MM com duas biscatíssimas. A primeira, Paulinha Denise, é uma espécie de “Capitu mareada”, loira, descolorida, brega, com seu eterno chapeuzinho de poodle, portadora dum metabiscatismo paranormal, recebendo várias “entidades”. A outra, Ariela, uma “Lolita” casada, cujo grande tesão é mesmo trair o marido.
O fato é que quando tudo parecia se encaminhar para um apartamento financiado pela Caixa Econômica Federal de Suzano (ou Presidente Altino), com Faustão e Galvão Bueno enriquecendo o domingo em família, acontecem dois fatos extraordinários: o autor encontra um diamante no garimpo clandestino na Serra da Canastra, e um velho amigo o convida para o tal réveillon numa cobertura do Leme, regado a substâncias lícitas e ilícitas: Hosana nas alturas!
Como eu disse, a história, a estrutura narrativa não tem importância alguma em Mirisola, pois é a linguagem – a estética, a poética e naturalmente a ética – a essência de sua obra e o que a torna única e incomparável em toda Literatura Brasileira.
O filósofo do indizível, por ele mesmo. Não gostou? Assine um jornalão, leia a Veja, recorra aos manuais acadêmicos e finja que Marcelo Mirisola não existe.
O problema é seu.
O lançamento nacional de Hosana na Sarjeta (Editora 34) acontece nesta quinta-feira (2) a partir das 20h no Espaço Cemitério de Automóveis em Sampa.
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