Faz uns dois meses. O jornalista Álvaro Costa e Silva, o Marechal, me pediu um depoimento sobre Reinaldo Moraes, nosso amigo comum. Era prum jornal de São Paulo. Claro que sim, em se tratando do Reinaldo, fiz questão de caprichar. O tempo passava e a matéria não saía, e eu já havia esquecido do pedido do Marechal. Até que nesse domingo (5/12) deram a capa da Ilustríssima pro Reinaldão, curiosamente depois de o autor de Pornopopéia ter perdido o Prêmio São Paulo, o Jabuti e o Portugal Telecom, algo em torno de 330 mil reais. Parece que esse povo é sádico, sei lá. De qualquer forma, desconsiderando as tolices que Ruy Castro falou sobre Bukowski, a Folha de São Paulo acertou na homenagem. Reinaldão merece.
Chato é que Costa e Silva, o marechal da Help, não aproveitou meu depoimento. Então vou dar uma wikilicada e expor os arquivos secretos dele.
Aqui vai:
Reinaldão
A poeta de cílios brancos que sofria muito para ancorar navios no espaço havia me fisgado, eu estava apaixonado pela biografia que Ítalo Moriconi escreveu sobre Ana C.
Já fazia um bom tempo que vivia hipnotizado, respirando o mesmo ar de Ana Cristina César, que da condição de biografada passou a encosto. Encosto brabo. Idos de 1997.
Um ano depois, Maria Rita Khel prefaciou meu primeiro livro, “Fátima Fez os Pés Para Mostrar na Choperia”. Ela foi a primeira pessoa que me chamou de “autor”. Naquela época, sem exagero, fez toda a diferença: salvou minha vida. Um belo dia, Maria Rita me disse que tinha uma filha com Reinaldo Moraes, a Ana. As coisas e os fantasmas começavam a se ajustar.
Ninguém sabe, mas além de grande escritor, Reinaldão também é exorcista. Talvez nem ele saiba. Vai saber agora. Aconteceu numa tarde de dolce far niente lá no antigo cafofo da rua João Moura, quando eu percorria sua estante de livros que mais parecia um ninho de urubu. No meio daquela babel de poeira, fechei os olhos e puxei aleatoriamente o primeiro objeto retangular que me distraísse da rinite. Veio o livrinho vermelho. O mesmo que me atazanava há dois, três anos. Só que dessa vez o A Teus Pés estava autografado dela pra ele. Quem leu Tanto Faz e leu A Teus Pés sabe que Reinaldo e Ana Cristina César se trombaram em Paris mais ou menos na mesma época -ou um pouco depois – que Gabeira e sua famosa tanga de crochê festejaram a anistia ampla, geral e irrestrita no mar de Ipanema (mais detalhes na biografia de Ana C. escrita por Ítalo Moriconi).
Transido, fui tirar satisfações daquele autógrafo. Reinaldão me disse uma cafajestice qualquer que serviu para despachar Ana C. pros cafundós líricos e mimeografados dos 70s (para sempre) e liquidou de vez aquela frescura que me acompanhava em forma de encosto, agora não lembro o que ele disse: só me lembro que na sequência fomos pra Mercearia São Pedro e enchemos a cara.
Um dado. Nessa época, a Mercearia era apenas um buteco despretensioso que evidentemente vendia birita, produtos de limpeza e duas dezenas de livros que o Marquinhos escolhia a dedo. Nada a ver com o pet-shop que funciona hoje no mesmo local.
Era 1998, e – é claro – além de encher a cara, a noite estava boa e pedia aventura. De lá, seguimos pro falecido bar da Roseli que – doze anos depois – viraria, acho que sim, o Bar do Bitch no antológico Pornopopéia. Entre uma e outra metástase literária, Reinaldão reclamava da falta de gênios na praça. Se era esse o problema, que fizesse três pedidos. A primeira coisa que me pediu foi o telefone do traficante.
Para ter gênio, precisa ter generosidade. Grandeza. Coisa que faltava (e continua em falta) em praticamente 99,9 % dos viadinhos culturais e nerds que, desde aquela época, já empestavam as antecâmaras dos segundos cadernos. Os mesmos que poucos anos depois iriam ocupar as prateleiras de sabão em pó e encher o saco do Marquinhos lá na Mercearia São Pedro. Não deixem de experimentar o sanduíche de carne assada: o melhor da Vila Madalena, apesar dos pesares.
Lembro que eu era um escritor recusado por todas as editoras do Brasil, e lembro também que escondia o Tanto Faz no vão do sofá perto da janela lateral do quarto de dormir. Estava desempregado e evitava a todo custo que alguém me perguntasse o que, afinal, eu pretendia “fazer da vida” além de perder meu tempo lendo bobagens. Li aquele livro safado do Reinaldão da mesma forma que li toda a obra de Henry Miller, muita coisa do Bukowski e as crônicas do Carlinhos Oliveira, tudo na moita. Esses caras foram generosos comigo.
Antes de conhecer Reinaldo Moraes, eu achava que para fazer literatura a gente não tinha opção diferente de ir ao sacrifício. O Ricardinho de Tanto Faz, e depois o próprio Reinaldo me fizeram entender que não é bem assim. Pode ser mais complicado se você tiver três filhas matriculadas no Pueri Domus: o sacrifício muda de endereço – se é que me faço entender. Quero dizer que não tenho filhas em idade escolar, e nunca cheirei cocaína, ou melhor, só naquela noite Huxley no bar da Magali e até o dia amanhecer. Também considero que é um privilégio não ter um traficante à minha disposição. E claro, outro privilégio e não estar à disposição de nenhum traficante. Agora, o melhor de tudo, é saber que jamais vou atender os outros dois pedidos do Reinaldão. Nem fudendo. Posso ser gênio, mas não sou besta. Ele que tentou comer minha namoradinha de 17 anos e que tem ótimos contatos, ora, ele que se vire.
Tenham todos, bandidos e mocinhos, um ótimo natal.
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