Sylvio Costa
No dia em que Paulo Francis morreu, houve festa no céu. Nordestinos, muçulmanos, petistas, feministas, negros, socialistas de todos os quadrantes e matizes, acadêmicos, caciques indígenas, homossexuais, portugueses, asiáticos, funcionários da Petrobras e até meia dúzia de oficiais militares mais descontraídos saudavam alegremente a última viagem daquele que tantas vezes os alvejara. Mutirão feito por um exército de Raimundos, Severinos e Rosilenes permitiu que fossem obtidos, sabe lá como, os ingredientes necessários para um lauto banquete comemorativo, à base de carne de sol frita na manteiga de garrafa, macaxeira, arroz, feijão-de-corda, caldo de cana e aguardente da melhor qualidade.
Aceito no céu depois de uma tenebrosa batalha judicial no purgatório, Che Guevara foi convidado a fazer discurso. Encabulado, recusou.
– No mi gusta atacar personas muertas – encurtou Che, que parecia não ver a hora de sumir da vista de todos, acompanhado por duas belas jovens que lhe faziam escolta, uma sueca e outra francesa, ambas revelando no olhar voluptuoso o fascínio pelo bravo líder argentino.
Todos os olhos se dirigiram para a austera figura de Rui de Oliveira Barbosa. Afinal, a águia de Haia fora retratada pela impiedosa pena de Francis como um “moleque pernóstico, um demagogo” que, além de surrupiar bens públicos, “não só falava mal várias línguas como lia pior”. Rui rompeu o silêncio sepulcral em que se encontrava:
– Senhoras e senhores, contra as minhas intenções, sou forçado a pronunciar algumas breves palavras. Devo dizer que as ofensas irrogadas contra minha pessoa apenas provam o equívoco daqueles que supuseram colher-me em erro, oferecendo a todos o ensejo de perceber até onde podem levar os tenebrosos caminhos da leviandade. Não irei, todavia, proferir condenações de qualquer espécie, repetindo o mau exemplo de quem a mim e a tantos outros insultou. Estou certo de que as fibras dilaceradas pela maldade se reatarão e os últimos equívocos acabarão naturalmente por dissipar-se, de modo que a harmonia se restabelecerá de todo. Não serei eu, portanto, quem celebrará com discursos o falecimento de outrem.
Embora encantada com a verborragia do mestre baiano, a platéia constatou com frustração que, se Rui se negara a fazer o esperado pronunciamento, ninguém mais o faria. O melhor, portanto, era saborear aquelas delícias da cozinha nordestina, porque a comida estava esfriando e vários estômagos já começavam a roncar inconfundíveis apelos por uma boa injeção de nutrientes.
Enquanto isso, o alvo daquele macabro repasto batia as portas do purgatório depois de desagradável e rapidíssima passagem pelo inferno. A mídia nativa mal começara a desfilar longo rol de exaltações ao polemista Paulo Francis – aliás, Sir Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn – quando este já descia ao território de Satanás. A sua primeira impressão foi ótima. No caminho, foi puxando conversa com um banqueiro nova-iorquino e um capo da Máfia italiana, com os quais pôde travar animada prosa. Curiosamente, o segundo pareceu-lhe mais interessante que o primeiro. Cultíssimo, o italiano. Lera o melhor da literatura universal e sabia tudo de cinema. Assim, puseram-se os três a recordar cenas de filmes, rir de piadas obscenas, recitar versos de poemas marcantes ou discorrer sobre os rumos da economia mundial. Tudo muito bom, tudo muito bem até que surgiu diante deles o Diabo.
Tridente, chifres, rabo? Qual nada. Que luxo exibia o coisa-ruim! E como era bonito! O rosto expressivo, ombros largos, gestos pausados, elegância no andar e muitíssimo bem vestido num terno grafite, camisa cinza, uma bela gravata preta (deve ser italiana, imaginou Francis) e os pés enfiados no melhor cromo alemão. Erudito, o nosso Paulito pensou com seus botões na origem latina da expressão Lúcifer: “a estrela da manhã”. Tudo a ver, concluiu. Entraram os quatro num imponente prédio à la Corbusier. Educadamente, Satanás conduziu o mafioso e o banqueiro a um amplo salão, pedindo a Francis que aguardasse na ante-sala.
Minutos depois, volta Satã, com um sorriso debochado brotando entre os lábios. Ele se dirige a Francis:
– Pois é, acabaste nas minhas mãos, hein?
– I’m very sorry, but I don’t speak Spanish. Could you speak English, please? – respondeu o jornalista.
– Tinham me advertido que você era metido, mas não esperava tanto. Como hoje estou de bom humor, terei a paciência de explicar certas regras que respeitamos por aqui. A verdade, meu caro, é que o inferno é muito parecido com o mundo real. Temos um setor que podemos chamar de seis estrelas, onde nos encontramos no momento. Ficarão nesta ala aqueles dois que chegaram com você. Ela está reservada para aqueles europeus, norte-americanos, israelenses e canadenses cuja falta de escrúpulos os levou a alcançar posição de destaque na sociedade. Excepcionalmente, também são aceitos australianos, sul-africanos e neo-zelandeses neste quinhão dos meus domínios. Desde que, obviamente, sejam de raça branca. Temos vários setores intermediários, mas somos especialmente conhecidos pelo chamado Caldeirão Cultural. Ali vivem juntos os povinhos inferiores do mundo do qual você vem: sul-americanos, asiáticos, africanos e porcarias parecidas. É para lá que meus auxiliares o levarão agora.
Tal foi o choque causado pela notícia que Francis desmaiou. Quando recuperou a consciência, estava num cubículo com dois beliches. À sua frente, um latifundiário assassinado na Paraíba em 1864 depois de ter se notabilizado como um dos mais brutais senhores de escravos da região, e um agiota sírio que fez fortuna na cidade de São Paulo. Abreu contou que o outro hóspede chegaria mais tarde: Maninho do Pó, perigoso traficante carioca que carregava extensa folha corrida. Foi também Abreu quem explicou que só haveria uma maneira de Francis sair dali. Apresentar recurso à corte de revisão judicial que funcionava no purgatório. Se tivesse êxito, poderia expiar seus pecados por longos anos antes de ser admitido na bem-aventurança celestial. Caso contrário, voltaria ao inferno, mas seria rebaixado para o Sítio dos Horrores, onde ex-ditadores, torturadores, genocidas e outros cidadãos de qualificação assemelhada viviam uma rotina diária de humilhações, abusos sexuais, trabalhos forçados e chibatadas.
Foi assim que Paulo Francis chegou ao purgatório. Ainda no inferno, teve tempo de corromper um dos guardas que o guiavam para mandar para um tal Ivan, aparentemente um brasileiro há muito radicado em Londres, o seguinte bilhete:
“Dear Ivan,
The things are going worse here than I could imagine. I do need your help, honey. As fast as you can, please. Kisses. Paulo Francis”
Ao receber a desesperada mensagem, Ivan, o terrível, não só teve imediatamente a noção exata do que se passava como, depois de devorar cinco cigarros, já tinha na cabeça a solução para o problema. Primeiro, escreveria um bilhete de resposta. Depois, faria com que ele chegasse às mãos de Francis com a ajuda de poderoso pai-de-santo. Assim foi feito. O destinatário teve que morrer em mais uma grana pra pegar o envelope enviado pelo amigo. Tamanha foi sua afobação para abri-lo que rasgou uma das pontas do papel que vinha dentro. Nele, leu as sábias palavras de Ivan, o gênio:
“Caro Paulo,
Que bom ter notícias suas. Mesmo em circunstâncias pouco favoráveis. Duvido que as coisas aí estejam piores do que aqui. Não será difícil para você sair desse vale de tristezas. É simples. Ao chegar no purgatório, peça para ir no toalete. Vá. Lá chegando, saia logo em seguida porque morto não tem porra nenhuma pra fazer no banheiro. Brincadeira. Só pra relaxar. A senha, meu querido, é o Bombonette. Lembra? Aquele, de mão delicadas, que os garrafeiros de Copacabana queriam enlouquecer. Pois pois. Uma vez chegando no purgatório, pede pra falar com ele. Bombonette vai dar um jeito de garantir pra você uma vida eterna digna e feliz. Tem que falar grosso. Você merece. Se ele começar a enrolar, pode cobrir de porrada. Boa sorte, e de nada.”
Não foi preciso dar porrada. Bombonette e Paulito se entenderam às mil maravilhas. Auxiliar do assistente do assessor de São Pedro, Bombonette, a fineza em forma de gente, cobrou a módica quantia de US$ 10 mil para introduzir Francis no reino dos céus. O pagamento pôde ser efetuado sem maiores dificuldades. Paulo Francis teve apenas que lembrar o número do cartão de crédito, uma bobagem para quem tinha tão prodigiosa memória, e autorizar o crédito em favor da Barão da Torre Indústria e Comércio Ltda. Com seus inúmeros contatos (mortais e imortais), Bombonette cuidaria do resto, tomando as providências inclusive para que a operação fosse feita com data retroativa, em favor de uma tia que morava no Méier, no Rio, e que precisava urgentemente de dinheiro para pagar uma operação. Tudo por uma boa causa, portanto. Por medida de prevenção, dois anjos-da-guarda foram encarregados de proteger Francis de possíveis manifestações de hostilidade de seus desafetos. Bombonette fez ainda um afago final. Armou um encontro entre o mais norte-americano dos intelectuais brasileiros e um dileto amigo, que há muito tempo Francis não via.
– Glauber!!!!!!!!!!!!!! – emocionou-se Paulo Francis.
– Ô, rapaz, seja bem-vindo. Você vai se divertir muito. Isso aqui não é a Terra, mas transe é o que não falta – disse o outro, durante apertado abraço.
Enquanto os dois saíram a caminhar, recolocando a conversa em dia, Deus em pessoa fez-se presente no banquete à moda nordestina para lembrar à massa dos ressentidos a necessidade do perdão. Eles próprios, afinal, não estariam ali se não tivessem sido perdoados. De mais a mais, qual era a bronca com Francis, questionava o Ser Supremo? Preconceitos, eventuais injustiças, certo deslubramento com Nova York e suas ilusões (de ótica e de ética), críticas ferozes às esquerdas e seus credos tantas vezes tortos? E quem ali não alimentou pensamentos ilusórios, não deu curso a idéias preconceituosas ou cometeu erros de julgamento, perguntava o Senhor? Que completou: “Ele teve ainda duas grandes virtudes. Exerceu com coragem pessoal rara a liberdade de pensar e se expressar, e sempre foi um tremendo dum bom papo”.
Assim, quando Francis chegou, os mais exaltados já tinham se acalmado, e muitos o tietaram desbragadamente. Francis ficou especialmente grato pela recepção calorosa dos nordestinos. “Que gente mais carinhosa!”, impressionava-se. Mas o coração de Francis deu mesmo pulos de alegria ao ver passar uma senhora fazendo jogging. Era Jacqueline Kennedy em pessoa. Paulito não se conteve, e, chamando Glauber para acompanhá-lo, saiu em disparada atrás dela.
– Jackie! Jackie! Slow down, please. Jackie…
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