Um longo ensaio do economista argentino Jorge Beinstein, publicado esta semana no site www.cartamaior.com.br, discute em profundidade o crepúsculo do capitalismo, suas nostalgias, heranças, barbáries e esperanças no início do século XXI, constituindo uma das abordagens mais originais que tenho lido ultimamente, de forma que vale a pena assinalar seus pontos mais importantes.
Abrindo com a afirmação de que a crise econômica global de 2008 inevitavelmente irá se aprofundar ainda mais em 2010, ao contrário do que proclamam as mídias mais interessadas em varrer a verdade para debaixo do tapete, o autor traça um painel desde a crise global de superprodução (presente e passada) até a crise geral de subprodução (futura), sinalizando com o esgotamento da civilização burguesa.
Segundo Beinstein, nos encontramos diante do declínio do centro do mundo – os Estados Unidos – e que essa decadência não vem acompanhada da ascensão de nenhum outro centro imperialista mundial para substituir a potência declinante. As outras grandes potências (União Européia, Japão, Rússia, China) encontram-se todas no mesmo barco global à deriva. A partir da Segunda Guerra Muncial, o capitalismo se estruturou em torno dos EUA, espaço fundamental de todos os negócios – produtivos, midiáticos, financeiros. Sua degradação desde os anos 70 e sua decadência atual expressam um mal universal: o parasitismo e a predação ianque é sua manifestação específica, central e acelerada pela crise crônica global de superprodução – incluindo os falsos milagres como a “expansão” chinesa, o “renascimento” russo e a “integração” européia – uma vez que todos constituem fenômenos perversos.
Na expressão do autor, o parasita norte-americano consumia acima de sua capacidade produtiva porque as economias da Europa, China, Japão, etc., precisavam vender seus bens e serviços e investir seus excedentes financeiros. Isso gerou uma interdependência cada vez mais profunda que foi chamada de “globalização”, e a propaganda neoliberal descreveu-a como uma espécie de etapa superior do capitalismo, superadora do sistema vigente entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a crise dos anos 1970.
Foi construída uma imagem idílica de um capitalismo transnacional liberado da tutela dos grandes estados nacionais,crescendo indefinidamente em torno dos círculos virtuosos interrelacionados da revolução tecnológica, da expansão do consumo e das finanças globais. Na verdade, o que se impôs foi um capitalismo global caracterizado pelos negócios financeiros articulados em torno de um grande centro imperialista com claros sintomas de decadência, acumulando dívidas públicas e privadas, externas e internas, cada vez mais dependentes de suas periferias desenvolvidas e subdesenvolvidas.
Seria um erro grosseiro considerar o fenômeno parasitário como um fato específico, exclusivo da sociedade norte-americana. Trata-se, na verdade, de um processo mundial. A financeirização, a proliferação de redes mafiosas e o gangsterismo, como o tráfico de drogas, a prostituição, os saques de empresas públicas periféricas, atravessa todas as elites capitalistas dos países centrais e produz uma rápida conversão-degradação das burguesias do Terceiro Mundo, transformadas em autênticas lumpen-burguesias periféricas.
Poderiam dizer que o caso chinês é a exceção, mas não é assim. A China é uma grande exportadora industrial, mas acumula fabulosos excedentes financeiros e cumpre um papel muito importante nos negócios especulativos mundiais. Suas elites dirigentes são altamente corruptas e, em última instância, sua industrialização é completamente funcional à reprodução do capitalismo financeiro global, especialmente na fase mais recente da economia norte-americana, fornecendo-lhe mercadorias baratas e acumulando, em troca, dólares, bônus do tesouro e outros papéis. Deste modo, a elite chinesa participa ativamente da festa parasitária global, formando parte do restrito clube dos ricos do mundo. Sua base social de trabalhadores e camponeses faz parte da massa proletária de pobres, oprimidos e explorados.
A propósito, quanto à questão da China, em resenha do novo livro de David Harvey, O Neoliberalismo: História e Implicações , o nosso Chico de Oliveira (1) comenta que Harvey dedica um proveitoso capítulo à análise recente da evolução chinesa desde os dias de Deng Hsiao Ping, para ele um dos construtores – ao largo das teorias de Hayek – do neoliberalismo. Diz ele: “Recado direto para o Brasil: não tentemos ser “chineses” porque isso quer dizer 5 dólares de salário por dia, sem direitos sociais, com forte discriminação contra as mulheres, trabalho infantil sem disfarces, privilégios inimagináveis para altos executivos, subsídios governamentais astronômicos para capitais estrangeiros. A China sofre de um excesso de poupança que, se transformada em investimento interno, pode fazer ruir a economia chinesa, e não a norte-americana. Em marxismo clássico, trata-se de super-acumulação de capitais. O ajuste de contas virá algum dia, mas não na forma de uma nova guerra inter-imperialista”.
Afinal, estão todos no mesmo barco global à deriva. Beinstein adverte que a realidade da crise mostra o desespero das outras grandes potências diante do declínio de seu espaço central de negócios. O que estamos presenciando não é a substituição da unipolaridade por alguma forma de multipolaridade eficaz – traduzida por uma espécie de repartição completa do mundo entre potências centrais – mas sim seu deslocamento para um processo de despolarização, onde vão se abrindo múltiplos espaços nos quais os controles imperialistas (norte-americanos, europeus e outros) estão enfraquecendo, ou onde a articulação capitalista do mundo se debilita ao ritmo da crise. E os antecedentes históricos (sobretudo se pensarmos no que ocorreu a partir da Primeira Guerra Mundial) assinalam que, se isso ocorre, se a hierarquia mundial do capitalismo (econômica, política, cultural e militar) entra em crise, então irrompem as condições objetivas e subjetivas para as rebeliões das vítimas do sistema (grifo meu).
Quando certos gurus ocidentais mostram sua preocupação diante do possível desenvolvimento do que chamam de “despolarização caótica” estão expressando um grande medo universal, consciente ou inconsciente, frente à perspectiva da reaparição do odiado fantasma anti-capitalista, várias vezes declarado morto e exorcizado, mas que sempre permanece como uma ameaça. E como uma esperança. Próxima coluna continuamos com o ensaio de Jorge Beinstein.
(1) “Sequelas de um velho malfeitor”, Chico de Oliveira, Jornal de Resenhas no. 7.
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