Márcia Denser*
O evento mais marcante de 2008 foi de longe a crise do capitalismo globalizado que se abateu sobre o mundo ocidental e uma das melhores análises da crise é, sem dúvida, de Walden Bello, professor de ciências políticas e membro do Transnational Institute de Amsterdam, em artigo para Sin Permiso. A seguir, os melhores trechos deste artigo que, em meio a dezenas de textos confusos, prolixos ou técnicos demais, consegue esclarecer e traçar as linhas mestras do evento.
“Georges Soros, que viu a crise se aproximar, disse que o que estamos passando é a crise do sistema financeiro, a crise do ‘gigantesco sistema circulatório’ de um sistema capitalista global que está passando dos limites. Para seguir com a tese do arquiespeculador, estamos assistindo a uma intensificação de uma crise ou de uma contradição central do capitalismo global: a crise de superprodução, também conhecida como super-acumulação e supercapacidade.
“Trata-se da tendência do capitalismo de produzir uma enorme capacidade produtiva que termina por rebaixar a capacidade de consumo da população, devido às desigualdades que limitam o poder de compra popular, o qual termina por erodir as taxas de lucro”.
“Para entender a conexão, teremos de retroceder à chamada Época Dourada do capitalismo contemporâneo, compreendida entre 1945 e 1975. Foi um período de rápido crescimento, tanto nas economias do centro como nas subdesenvolvidas, crescimento propiciado, em parte, pela reconstrução da Europa e do Leste Asiático depois da devastação da II Guerra Mundial e, em parte, pela nova configuração sócio-econômica institucionalizada sob o novo estado keynesiano. Um aspecto chave desta última foram os severos controles estatais da atividade de mercado, o uso agressivo de políticas fiscais e monetárias para minimizar a inflação e a recessão, assim como um regime de salários relativamente altos para estimular e manter a demanda”.
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Este período de elevado crescimento terminou em meados dos 70, quando as economias do centro se viram imersas na estagflação, quer dizer, na coexistência de um baixo crescimento com uma inflação alta, o que a teoria econômica neoclássica supunha impossível. Contudo, a estagflação era um sintoma de uma causa mais profunda, a saber, a reconstrução da Alemanha e do Japão, assim com o rápido crescimento de economias em vias de industrialização, como Brasil, Taiwan e Coréia do Sul, somando-se a isso uma enorme capacidade produtiva que incrementou a competição global, enquanto a desigualdade social, dentro de cada país e entre países limitou globalmente o crescimento do poder aquisitivo e da demanda, resultando assim erodida a taxa de lucro. A drástica elevação do preço do petróleo nos anos setenta não fez senão agravar a coisa”.
“O capital tentou três vias de saída do atoleiro da superprodução: a restruturação neoliberal, a globalização e a financeirização. A reestruturação neoliberal tomou a forma do reaganismo e do thatcherismo no Norte e do ajuste estrutural no Sul. O objetivo era a revigorar a acumulação de capital, o que foi feito: 1) removendo as restrições estatais ao crescimento, ao uso e aos fluxos de capital e de riqueza; 2) redistribuindo a renda das classes pobres e médias dentre os ricos, de acordo com a teoria de que assim os ricos seriam motivados a investir e a alimentar o crescimento econômico”.
“O problema dessa fórmula era que, ao redistribuir a renda em favor dos ricos, estrangulava-se a renda dos pobres e das classes médias, o que provocava a restrição da demanda, sem induzir os ricos a investir mais em produção. De fato, a reestruturação neoliberal, que se generalizou no Norte e no Sul ao longo dos anos oitenta e noventa, teve resultados pobres em termos de crescimento: o crescimento global prometido foi de 1,1% nos 90 e de 1,4% nos 80, enquanto a média nos 60 e nos 70, quando as políticas intervencionistas eram dominantes, foi, respectivamente, de 3,5% e de 2,54%. A reestruturação neoliberal não pôde terminar com a ‘estagflação’.”
“A segunda via de escape global tentada pelo capital para enfrentar a estagflação foi a ‘acumulação extensiva’ ou globalização, quer dizer, a rápida integração das zonas semi-capitalistas, não-capitalistas e pré-capitalistas à economia global de mercado. O problema com esta via de saída do estancamento é que se exacerba o problema da superprodução, porque aumenta a capacidade produtiva. Dados os limitados ganhos obtidos para conter o impacto depressivo da superprodução, seja através da reestruturação neoliberal, seja com a globalização, a terceira via de saída tornou-se vital para manter e para elevar a rentabilidade. A terceira via é a financeirização”.
“No mundo ideal da teoria econômica neoclássica, o sistema financeiro é o mecanismo a partir do qual os poupadores juntam-se com os empresários que têm necessidade de seus fundos, para investir em produção. No mundo real do capitalismo tardio, com o investimento na indústria e na agricultura gerando lucros magros, por causa da superprodução, grandes quantidades de fundos excedentes circulam e são investidas e re-investidas no setor financeiro. Quer dizer, o sistema financeiro gira sobre si mesmo. O resultado é que se aumenta o hiato aberto entre uma economia financeira hiperativa e uma economia real estancada”.
“Tem havido uma crescente desconexão entre a economia real e a economia financeira nos últimos anos. A economia real cresceu, mas nada comparável à financeira, que explodiu. A desconexão entre a economia real e a financeira não é acidental, porque a economia financeira se distanciou precisamente para fazer frente ao estancamento gerador da superprodução da economia real.
“O problema de investir em operações do setor financeiro é que equivale a exprimir valor de valor já criado. Pode criar lucro, mas não cria valor – só a indústria, a agricultura, o comércio e os serviços criam valor novo. Visto que os lucros não se baseiam na criação de valor novo ou agregado, as operações de investimento resultam extremamente voláteis e os preços das ações, as obrigações e de outras formas de investimento, podem chegar a divergir radicalmente de seu valor real: por exemplo, as ações de empresas incipientes de internet, que se mantiveram por um tempo em alta, sustentadas principalmente por valorações financeiras em espiral, logo se arruinaram”.
“Agora ficou demonstrado que a financeirização é uma trilha perigosa que leva à formação de bolhas especulativas, capazes de oferecer uma efêmera prosperidade a uns quantos, mas que terminam no colapso empresarial e na recessão da economia real. As questões-chave são estas: Quão profunda e duradoura será esta recessão? A economia dos EUA necessitará criar outra bolha especulativa para sair dessa recessão? E se isso for o caso, onde se formará a próxima bolha? Alguns dizem que a próxima surgirá no complexo militar-industrial ou no ‘capitalismo de desastre’ sobre o qual escreve Naomi Klein. Mas isso não é farinha do mesmo saco”.
E falando em Naomi Klein, “a repórter exemplar das enfermidades e das alternativas da humanidade na era neoliberal”, segundo Emir Sader, é a autora do livro A Doutrina do Choque – a ascensão do capitalismo de desastre (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008), disparado a melhor obra lançada este ano sobre o assunto.
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