A centralidade adquirida pelo debate sobre a descriminalização do aborto na atual campanha eleitoral é extremamente bem vinda. Não concordo com as afirmações de que a política não deva se misturar com temas religiosos e morais. E concordo menos ainda com os que afirmam que este debate seria uma espécie de “retrocesso medieval”.
Não há como negar. A política também diz respeito a controvérsias sobre temas morais e religiosos. Muitos acreditam que essa seria até mesmo a própria natureza da discussão política. De um modo ou de outro, as questões morais sempre frequentaram a teoria política ocidental. Os cientistas políticos pesquisamos há pelo menos 30 anos sobre a renovada importância do chamado “pós-materialismo” (em outras palavras, dos valores) na política.
No mundo inteiro, as campanhas eleitorais sempre ficaram mais interessantes quando temas como esses ganharam os holofotes. Os debates sobre temas administrativos ou relacionados à gestão de políticas públicas são muito importantes – mas, de modo geral, são também mais monótonos e insossos. Nesse sentido, o curso seguido pela atual campanha presidencial brasileira se equipara ao que já acontece em democracias mais maduras.
O argumento de que o debate sobre o aborto (e outras questões morais) seria retrógrado e anacrônico também não poderia estar mais “furado”. Várias pesquisas de opinião feitas pelo Datafolha ao longo dos últimos anos mostram haver um apoio amplamente majoritário na sociedade à manutenção da atual legislação sobre o aborto. Esse apoio já atinge mais de 7 entre cada 10 eleitores brasileiros – e a tendência é de crescimento. Salvo engano, dificilmente deve existir tanto consenso na sociedade em relação a outros temas que envolvem valores morais.
Na verdade, estou percebendo em 2010 um fenômeno muito parecido com o que ocorreu durante o “plebiscito do desarmamento” em 2005. Me refiro a um visível descompasso entre, por um lado, os formadores de opinião politicamente corretos e, por outro lado, as preferências da sociedade em seu conjunto.
Há cinco anos, a quase totalidade dos chamados “formadores de opinião” (na imprensa, na academia e no terceiro setor) fez campanha pela aprovação de um dispositivo do Estatuto do Desarmamento que proibia totalmente o comércio de armas de fogo no país. Claramente, essa era a opção “politicamente correta”. Não ficava bem para ninguém defender publicamente a rejeição desse dispositivo. Via de regra, essas pessoas eram maldosamente rotuladas. A nada simpática alcunha de “lobistas involuntários da indústria armamentista” era uma das acusações mais suaves.
Apurados os votos, constatou-se haver uma ampla “maioria silenciosa” que não era politicamente correta. Quase dois em cada três eleitores votou pela permissão do comércio de armas de fogo – dentro dos limites estabelecidos pelo Estatuto do Desarmamento. Os defensores da proibição do comércio de armas foram desmoralizados.
Acho que estamos vendo agora a repetição desse mesmo padrão. Podemos chamá-lo de um forte descompasso entre formadores de opinião mais “liberais” e uma opinião pública mais “conservadora”. O fato (nem sempre admitido) é que a maioria das nossas elites culturais ou defende abertamente a ampliação do direito ao aborto ou defende que esse tema sequer seja debatido na campanha (o que é mais ou menos a mesma coisa).
O problema é que a população brasileira não costuma ser politicamente correta no debate sobre valores morais. Em última análise, foi a própria sociedade quem empurrou goela abaixo dos nossos políticos a discussão sobre o aborto. A agenda “pós-materialista” entrou definitivamente em cena nas campanhas eleitorais brasileiras.
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