Marcelo Mirisola*
“Se fosse tomar conhecimento do sofrimento mortal de cada homem e mulher que conhecera durante todos os seus anos de vida profissional, da história dolorosa de arrependimento, perda e estoicismo de cada um, de medo, pânico, isolamento e terror, se soubesse que cada coisa que lhe pertencera do modo mais visceral fora arrancada.(…)” Se o Homem Comum olhasse no retrovisor talvez chegasse a uma conclusão: “A velhice não é uma batalha. A velhice é um massacre”.
Philip Roth, “Homem Comum”
Eu era o melhor amigo do meu avô, e era amigo dos amigos dele. Adolescente, passava meu tempo na companhia de velhos. Nunca conheci um velho que festejasse a decrepitude (estou falando dos velhos das antigas, dos meus parceiros de bocha e amigos do velho Pascoal, gente de fibra e carne e osso); todos reagiam com imprecações, e maldiziam a velhice diuturnamente, jamais nenhum deles encarou a velhice como algo diferente da velhice, ao contrário viviam reclamando da vida jogada fora, e do tempo que passara rápido demais, aos poucos foram morrendo um a um. Mas esses eram meus velhos, meus amigos. Havia afinidade: do lado deles, uma “espernachia” para a miséria humana, e da minha parte um pessimismo inato e solidário. Nos divertíamos um bocado. Isso foi no começo dos anos oitenta.
Os velhos do dr. Wilson Jacob Filho e do dr. Antonio Augusto de Arruda Silveira Junior são outros velhos. Jacob, num artigo recente escrito para o suplemento “Equilíbrio”, da Folha de S. Paulo, reclamava da má-fé que apregoa medidas “antienvelhecimento”. Abre aspas: “Chamou-me atenção um convite, sofisticado e colorido, divulgando que, nos próximos dias, ocorrerá o encontro dos adeptos da "medicina antienvelhecimento". No programa, temas e pesquisadores de grande relevância em meio a um grupo de interesseiros cujo principal objetivo é confundir os incautos, propondo-lhes a fonte da eterna juventude. Curiosamente, conheço muitos deles e constato que nem com eles mesmos essas mentiras conseguem ser aplicadas.
Sua aparência denota que o tempo não lhes poupa das suas naturais conseqüências. Observei que os fatos se conectam. Se, por um lado, continuarmos a permitir que o processo natural de envelhecimento seja negado e, por outro, aceitarmos as argumentações dos falsos profetas, que apregoam erroneamente que os conceitos da geriatria e da gerontologia sejam usados como medidas ‘antienvelhecimento’, perpetuaremos o paradigma de que a velhice é uma doença que deve ser combatida com tratamentos caríssimos sem respaldo científico”.
Sua percepção merece aplausos, dr. Jacob. Sou obrigado a concordar que, de fato, seus colegas são picaretas. O problema é que o senhor não se deu conta de que a mesma má-fé que apregoa medidas “antienvelhecimento” também nega a decrepitude, e aí o senhor e os seus pares cometem o mesmo erro.
PublicidadeDepois de apontar a picaretagem e discorrer sobre a farsa ensejada entre os pares, Jacob conclui: “Mas, se nos respaldarmos nas evidências responsáveis, teremos as bases para constituir um grande movimento que marcará uma posição vanguardista na luta "pró-envelhecimento saudável".
A única evidência que podemos nos respaldar, dr. Jacob, é a morte. Ainda que uma pessoa envelheça com saúde e consiga desfrutar de suas capacidades funcionais, a única certeza nesta vida, já dizia meu bom e velho avô (corroído por um câncer de próstata) é a morte. Em qualquer idade, aliás.
Já o doutor Antonio Augusto de Arruda Silveira Junior, especialista em clínica médica e cardiologia e pós-graduado em geriatria e exercícios físicos no envelhecimento pela Faculdade de Medicina da USP, médico responsável pelo Instituto Lyon de Curitiba, autor dos livros "Pare de Envelhecer Agora" e "Musculação Aplicada ao Envelhecimento – bem-estar não tem idade", diz o seguinte: "É importante diferenciar duas características do envelhecimento. O idoso senil, que pode se tornar um idoso frágil, e o idoso senescente, também chamado de bem-sucedido".
Gostaria de acrescentar mais um dado ao currículo do dr. Silveira Junior: sacana.
“Idoso bem-sucedido”?
Vamos imaginar um homem comum. Para traçar um paralelo com o otimismo do doutor Silveira Jr., digamos que o nosso homem comum tenha perdido as pessoas que mais amava (essas perdas se deram calmamente, no decorrer dos anos, aqui vamos desconsiderar suicídios, assassinatos, e mortes violentas em geral) – : imaginemos que o nosso homem comum teve uma vida sem sobressaltos, e que ficou broxa antes do tempo, e provavelmente levou um monte de chifres em silêncio, foi traído pelos amigos e jamais desfrutou da cunhada que tanto desejava. Trabalhou a vida inteira num emprego ridículo e sustenta filho, nora e dois netos vagabundos com sua aposentadoria de merda. Agora, o dr. Silveira Junior quer privá-lo do desdém? Esse homem pagou os carnês de IPTU, teve de agüentar um síndico metido a yuppie, nunca deixou atrasar um condomínio; não bastasse o desgosto de ser corintiano, não bastasse ter sido ridicularizado pelo neto vagabundo por causa do pijama e das gírias ultrapassadas que se atreveu a usar… se não bastassem todos esses desaforos, e os milhares engolidos ao longo de uma vida inteira jogada na lata do lixo, ele ainda – depois de tudo – tem a obrigação de ser um idoso bem-sucedido? Isso sem falar nas parcelas extorsivas do plano de saúde e nos gerúndios das mocinhas do telemarketing, imaginemos nosso homem comum no corredor de quimioterapia do Hospital Oswaldo Cruz, imaginemos, imaginemos os malditos diminutivos e as gracinhas que teve de ouvir de médicos e enfermeiras por conta de seu patético estado de saúde. “Tá parecendo um filhotinho de pardal, gracinha… Muiiiiito bem, abaixa as calças, vovô”.
Por que o dr. Silveira Junior quer subtrair o direito do nosso homem comum de gritar? Será que o fato de ter um corpo que apodrece já não é suficiente humilhação? Se um homem não pode sequer renegar sua patética condição humana, ele não é mais humano. A alternativa ao suicídio é o grito, porra! Não bastasse ter envelhecido cercado por patifes de todos os lados, esse pobre infeliz não pode sequer amaldiçoar o câncer que lhe corrói as entranhas? Alguém precisa avisar a esse doutor Silveira Jr. que existe um negócio chamado tragédia humana, e que ele não tem o poder de subtrair a alma das pessoas. “Idoso bem-sucedido”?
No lugar dessa infâmia, sugiro dois palavrões para a reflexão do dr. Silveira Jr: inexorabilidade e inalienabilidade. São mais do que palavrões, aliás, são condições para se resistir à humilhação de não termos nascido macacos; diferente dos bugios, temos consciência do nosso ridículo e do fim iminente, e ninguém – nenhum calhorda nesse mundo – pode ignorar o direito (inalienável) do homem amaldiçoar a existência, sobretudo, porque não é um macaco.
Em sendo assim, já que desfruto de uma condição humana e demasiada, posso – mesmo sem ter lido – desaconselhar os livros e o modo de avaliação animalesca desse doutor Silveira Junior.
Só mesmo desejando bananas a ele, vejam o que diz: “A senilidade é o conjunto das alterações patológicas do envelhecimento. O idoso perde peso e apetite, sente fadiga crônica e, aos poucos, vai perdendo também a massa muscular, e deixando de realizar as atividades físicas e intelectuais. São os pacientes mais comuns dos serviços de saúde e os que mais apresentam complicações ambulatoriais e hospitalares fatais".
Bravo! Doutor Silveira Junior chegou a uma brilhante conclusão: idosos envelhecem e apresentam complicações ambulatoriais e hospitalares fatais. Isso quer dizer que “eles” MORREM?
Impressionante, estou perplexo com essa revelação: idosos morrem!
Continua o dr. Silveira Junior: “Já o idoso senescente ou bem-sucedido é aquele de raciocínio e memória mais lentos, porém presentes. Que apresenta problemas normais ao envelhecimento mas que tem uma melhor qualidade de vida”.
Memória e raciocínio lentos… Sei, sei. A medicina podia avançar no sentido de proporcionar essas “vantagens” ou qualidade de vida aos jovens também. Seria uma maneira de antecipar os “problemas normais” a que se refere o dr. Silveira Junior. O equivalente a um futuro delicioso de artroses severas, cânceres, Parkinson, stents & válvulas & desfibriladores, amputações, e definhamento generalizado, em suma, aquilo que o doutor Silveira Jr. chama de “qualidade de vida”.
Com a palavra dr. Silveira Jr.: “Assim como em todas as outras doenças e situações do corpo humano, o melhor caminho é o da prevenção. Prevenção que começa com a prática de exercícios. Pelo menos 82% das mulheres e 69% dos homens ainda são totalmente inativos", alerta Silveira Jr. "Qualquer atividade física já traz grandes benefícios para a saúde. Mas, para os idosos, o melhor mesmo é a musculação, uma vez que é mais segura e mais eficaz, ajudando a manter a composição corporal, sem maiores perdas das massas muscular e óssea. O mais importante é evitar a imobilidade", diz.
Claro, só mandar aquele velho preguiçoso pra esteira, né, doutor? Aos oitenta anos está mais do que na hora de se matricular no curso de lambada aeróbica, ninguém pode ficar parado! Supino neles! O que importa é evitar a imobilidade. Sob a ótica do doutor Silveira Junior, ler um romance deve ser um atentado contra a “qualidade de vida”. Ficar em casa na frente da televisão, tomando uns gorós e olhando a bunda da empregada, nem pensar.
Mais Silveira Jr.: "Ser um idoso frágil ou um idoso bem-sucedido depende de tomar medidas práticas de mudança de estilo de vida e medidas terapêuticas – preventivas e curativas. E isso, quanto mais cedo, melhor. Normalmente, só procuramos um médico e mudamos nossas atitudes quando já estamos doentes".
Só para lembrar, esse doutor Antonio Augusto de Arruda Silveira Junior escreveu um livro cujo título é “Pare de envelhecer agora”. Um dia, porém, ele vai envelhecer, ah, vai sim, vai chegar aos oitenta anos e uma enfermeira psicopata limpará sua bunda e boca sujas.
Silveira Junior continua: “Estudos médicos têm mostrado que um octogenário ativo apresenta a mesma funcionalidade de um sexagenário inativo”.
Você, velho preguiçoso, pode escolher: o que prefere? Ser um octogenário ativo ou um sexagenário inativo. Doutor Silveira Junior garante que não tem diferença. A “funcionalidade” é a mesma. Além de sacana, esse doutor é sádico e debochado.
Silveira Junior, o sacana – baseado em evidências consolidadas cientificamente (sempre assim…) –, afirma que é absolutamente necessária a redução de ingesta de gorduras saturadas e gorduras trans, assim como carboidratos simples, aumentando a ingesta de gorduras poliinsaturadas, vitaminas, minerais com ação antioxidante (varredores de radicais livres)… e ele recomenda alto astral e mais um monte de coisas sem sal, sem gosto, sem vida.
Tava aqui pensando no quanto meu avô, o velho Pascoalão, sofreu antes de morrer. Sofreu não porque descuidou da saúde, mas porque estava de saco cheio. Nem vou comentar a “dieta” dele, e o modo como levava a vida: para mim é quase impossível, hoje, imaginá-lo numa seção de hidroginástica do Sesi ou comendo sushi. No mundo do velho Pascoalão não existia Pato Fu, nem Fernanda Takai. Esse é o lugar do dr. Silveira Junior, mundo colorido, fofo e bundão. A melhor coisa para o velho foi ter morrido, e ele morreu porque – repito – estava cansado, porque se recusou a ser um “idoso bem-sucedido”. Para ele, a única vitória que interessava era a do Palestra e, de preferência, em cima do Corinthians. Meu amigo morreu porque não tinha mais dinheiro para pagar o plano de saúde, morreram ele e os compadres dele, meu avô morreu porque não queria mais saber de médicos e enfermeiras o tratando como se fosse um velho retardado, morreu porque resolveu parar de tomar os remédios, morreu de teimoso, foi a melhor coisa que podia ter feito pela própria saúde.
*Marcelo Mirisola, 41, é paulistano, autor de O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país. No prelo, Proibidão (Editora Demônio Negro).