Nesta Semana da Consciência Negra, talvez seja preciso invocar a evolução da crescente, simétrica e oposta Inconsciência Branca, no mais puro e cocainômano sentido neonazista da cor – ou ausência dela –, o que dá uma inconsistência superlativizada de vários graus, alinhada com todos os preconceitos, racismos, discriminações e assédios, sejam morais, genéricos ou etários.
Reflexão com dor é ironia que custa os olhos da cara, daí a necessidade de voltar à tese da irrelevância da política, aliás atribuída à supracitada inconsciência cínica de uma camada dominante – branquíssima, esta – que sequer se dá mais ao trabalho de se levar a sério, conectada a um capitalismo que dispensa qualquer institucionalidade extra-econômica, salvo a penal, e não por acaso em expansão turbinada.
Então vou me apropriar dumas reflexões de Paulo Arantes – para não ficar citando academicamente, tirando e botando aspas, engessamentos à parte que não combinam com este espaço informal (onde se mata um leão por dia e é preciso ser genial) e espantam o leitor. Quer dizer, vou parafraseá-lo descaradamente, ele e seu estilo encantadoramente virulento.
A certa altura do texto, Arantes, questionado sobre se a política teria perdido a capacidade de dirigir a sociedade, respondeu que algumas revisões ingratas precisariam ser feitas, entre elas, a verificação de que o discurso político dos direitos de cidadania (degradado pela onguinização canalha de mil parcerias fajutas) estava correndo por uma pista inexistente; de que o neoliberalismo não era apenas uma política econômica perversa a ser descartada assim que a correlação de forças fosse menos adversa e substituída por uma macroeconomia de esquerda que resgatasse o Banco Central do seu cativeiro no mercado etc. E por quê?
Na sociedade moldada pelo modo capitalista de produção, ele explica, vigora a lei da troca de equivalente por equivalente, salvo no que diz respeito à força de trabalho, cujo consumo produz um excedente que faz o bolo do capital crescer. Ocultando o mundo subterrâneo da produção, vale para todo o resto o princípio da igualdade, ancorado na troca generalizada, da esfera da circulação de mercadorias ao Parlamento, norma que o movimento histórico da classe trabalhadora tratou de universalizar por meio da luta política contra todos os obstáculos e anacronismos que a burguesia ia botando no caminho. Mas aqui há uma ruptura histórica entre o mundo do trabalho e a centralidade moderna da política.
Segundo o critério burguês, se todas as desigualdades deviam aparecer como uma injustiça inaceitável, também era inegável a matriz política do dano a ser reparado, bem como plausível enxergar, nos mesmos termos políticos, a exploração econômica como uma desigualdade intolerável, demandando assim a compensação de um “salário justo”. Portanto, não deveria surpreender que a decomposição da sociedade salarial tenha decretado o fim da política, bem entendida como forma histórica de igualação de interesses e direitos correlatos. E o fim da política numa sociedade antagônica é sinônimo de violência explosiva, daí a militarização generalizada e a conversão do Estado social em Estado penal.
Mas a política que se tornou irrelevante é a política burguesa implementada com o braço esquerdo das lutas das classes oprimidas, que forçaram sua entrada no jogo da troca de equivalentes em igualdade de condições. No passado, foi o que salvou o capitalismo da autodestruição, mas como essa simbiose contraditória entrou em colapso, a guerra retornou. Porque o Estado não cessa de transferir poder para o mercado – o neoliberalismo é isto, uma tecnologia de poder para que haja mercado, e não a despeito do mercado, para corrigir suas disfunções – quer dizer, transfere cada vez mais soberania para as empresas, até o limite do poder punitivo penal.
Infelizmente, na periferia do sistema, isto é, no Brasil, não se formou esse sujeito coletivo capaz de enfrentar a nova soberania empresarial que hoje dispõe inclusive de milícias próprias e um sistema judiciário particular. De forma que o novo nome do jogo é exploração nua e crua, tão mais intensa quanto mais o trabalho vai se tornando redundante e o emprego escasso, uma forma brutalizada de controle social, sem contar o decorrente encarceramento em massa.
O jogo da falecida política também se inverteu: são as empresas soberanas que administram as políticas de sua conveniência, sobretudo as públicas, da TV digital à gestão do aterro sanitário social onde nos metemos até o pescoço. Para identificar o novo sujeito coletivo, é preciso olhar para o mapa da exploração. Ao redistribuir pelo planeta suas cadeias produtivas, ao subcontratar, terceirizar, informalizar, precarizar, as grandes corporações estão reordenando as relações entre espaço e poder mundo afora, isto é, estão favelizando, suburbanizando, bunkerizando etc.
No entanto, numa economia tocada por uma falsa mercadoria como a informação, cuja riqueza livre é subtraída pela apropriação empresarial, cedo ou tarde chegaremos também ao coração da cadeia de comando, pois afinal informação sem uma inteligência viva que a decifre é arquivo morto. Para desarmar a maldita ratoeira, Arantes é categórico: precisaríamos inventar uma “outra campanha”, algo que conjugasse desobediência civil e mobilização em massa.
Enquanto o coletivo não vem, individualmente já estou fazendo a minha parte: tentando ampliar os níveis da consciência, atualmente tão embaçada por tantas falcatruas discursivas. Graças à Semana da Consciência Negra e às apropriações aranteanas. O meu bom filósofo e as pessoas de todas as raças não vão se importar: afinal, é por uma boa causa.
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