Toda vez que estoura um escândalo de corrupção pesado, dois sentimentos parecem assomar de imediato. Primeiro, uma ânsia de urgência: chocados e indignados, queremos ver todos os envolvidos atrás das grades no dia seguinte. O segundo, que vem imediatamente depois que o sentimento de urgência se frustra, é a sensação de que nada acontece, de que esse país não tem jeito mesmo, que ninguém é punido, que político nunca vai preso, etc, etc. Quem quiser que me chame de ingênuo ou excessivamente otimista, mas não me parece que seja isso o que está acontecendo em Brasília desde que veio à tona o horroroso Mensalão do Arruda.
As cenas de descaramento explícito protagonizadas pelos distritais da base do governador do DF até podem dar a impressão de que nada acontecerá. Que está tudo pronto para nos servir ao final uma enorme pizza. Mas a verdade é que do início de dezembro para cá (e só se passou um mês), muita coisa já aconteceu. Nem tudo está dominado no mundo de José Roberto Arruda.
Antes que o mensalão estourasse, o quadro político do Distrito Federal era o seguinte. Arruda era o único governador do DEM. O partido depositava nele todas as fichas. Afinal, só tinha duas vitrines de reconhecida visibilidade, o DF e a prefeitura de São Paulo. O jogo de Arruda oscilava entre dois objetivos: ele poderia vir a se tornar o candidato a vice-presidente na chapa do PSDB, com José Serra, ou disputaria a reeleição como governador. Qualquer que fosse a sua decisão, era peça importante nos dois pleitos. Influiria na formação da chapa oposicionista na eleição de outubro e definiria a situação eleitoral no DF.
As pesquisas eleitorais no DF apontavam para uma situação de relativa tranquilidade. O único adversário de peso para o governo do DF era Joaquim Roriz. Mas ele, filiado ao minúsculo PSC, teria pouquíssimo tempo de TV. E diminuta capacidade de agregação. Roriz estava no PSC porque brigou com o PMDB. Arruda tinha nas suas mãos todos os partidos maiores, com exceção do PT. O governo federal poderia jogar seu peso na chapa do PT, mas mesmo ali havia problemas, uma vez que parte dos petistas (especialmente a parcela ligada ao deputado Geraldo Magela) ainda resistia à candidatura de Agnelo Queiroz. Se Arruda viabilizasse espaço na chapa de Serra, Paulo Octávio ainda entraria para o governo como opção com força.
O primeiro efeito prático do Mensalão do Arruda foi ter desarrumado completamente essa conformação política. Há tempos o DEM se esforça para buscar mudar a imagem que herdou do PFL, de partido fisiológico, sempre no poder. Ninguém aqui está dizendo que o Democratas virou uma ilha de honestidade (o partido ainda tem várias figuras complicadas vinculadas a ele). O que se está falando é de um esforço de marketing, de construção de uma outra imagem: o que o DEM busca – se vai conseguir, é outra história – é se mostrar ao público como uma opção de voto conservador para valer: uma nova UDN. Por conta desse esforço de construção de imagem, o partido não hesitou muito em defenestrar Arruda. E ele se desfiliou antes que fosse expulso.
Sem partido, Arruda saiu do páreo eleitoral. O DEM tinha uma alternativa: preservar Paulo Octávio. Mas o jogo político tem algumas regras claras, e uma delas é o adversário não gastar munição à toa. Se Arruda saiu do páreo, ficou claro para Paulo Octávio que o chumbo dos adversários agora iria se concentrar nele. Nas primeiras denúncias que começaram a sair envolvendo seu nome, Paulo Octávio tomou suas providências. Reuniu sua família e decidiu que também não disputará o GDF. O vice-governador até diz que pode disputar outros cargos. Mas o efeito prático é que, assim, como Arruda, ele também deixou de ser referência no páreo eleitoral. E o DEM não tem mais cartas na manga. Ou seja: o partido está fora do páreo também.
Logo nos primeiros momentos do escândalo, a filha de Joaquim Roriz, a deputada distrital Jaqueline Roriz (PSDB) lembrava outra máxima da política: a de que os políticos, quando deixam de ter capacidade de influência eleitoral, acabam abandonados no caminho. Isso pode acontecer com Arruda e Paulo Octávio? É claro que eles ainda têm a força da caneta, já que estão no governo. Mas para onde irão seus aliados em outubro? Se o DEM saiu da disputa, os partidos aliados de Arruda vão ter de buscar uma alternativa. O que farão PMDB e PSDB e os menores? É possível que voltem para Roriz mesmo com a desconfiança de que é Roriz quem está por trás dos vídeos gravados por Durval, que prejudicaram todo mundo? Ou vão por outro caminho? Irão todos para o mesmo caminho? A eleição em Brasília está aberta.
Pode-se dizer: ficar só nisso é muito pouco. Os responsáveis têm que pagar pelo que fizeram. É verdade, e o comportamento dos distritais dá a impressão de que nada além da repercussão política acontecerá. Contribui para essa impressão o fato de que o Mensalão do Arruda ampliou-se por boa parte da Câmara Legislativa. O que acontece hoje ali não é exatamente uma estratégia de proteção a Arruda: é uma tática de sobrevivência. Os envolvidos querem continuar respirando. Têm que proteger Arruda porque é assim que eles se protegem também.
De fato, parece mesmo pouco provável que desse universo político saia alguma coisa. O que não significa, no entanto, que tudo está perdido. O inquérito da Operação Caixa de Pandora é, talvez, a mais bem documentada peça de investigação de corrupção política já produzida. É tão contundente que não tem dado aos juízes a velha desculpa de nada fazer pela possibilidade de se pegar em tecnicalidades. Não houve delegados apressados cometendo precipitações que os juízes possam considerar abusos. Não houve arroubos de vaidade dos policiais envolvidos. Não há interpretações nem subjetividades.
Por enquanto, as decisões da Justiça só têm competido para desmontar a amarração política que Arruda e seus aliados possam ter pretendido. A começar pela operação de busca e apreensão, que sacudiu a cidade. Passando, então, pela decisão do ministro Fernando Gonçalves, do STJ, de tornar o inquérito público, o que permitiu que todos os detalhes da investigação se tornassem conhecidas, com os depoimentos de Durval, as fotos dos maços de dinheiro e os vídeos constrangedores. Daí, à determinação da quebra do sigilo bancário de Arruda e dos demais, quando o governador até já ensaiava aquele discurso constrangedor do “perdoar para ser perdoado”. E, agora, à determinação para que Leonardo Prudente, o deputado da meia, deixe imediatamente a presidência da Câmara Legislativa. Há um pedido do Ministério Público para que todos os que estão diretamente envolvidos no escândalo saiam também. Por coerência, é bem provável que a decisão judicial seja nesse sentido.
Se isso acontecer, o cordão de proteção mútua que Arruda e seus mensaleiros imaginavam vai começar a se partir. E poderá ser a brecha para que as possibilidades de efeitos concretos possam vir a acontecer não só na Justiça mas também no Legislativo. Porque vai levar a uma nova correlação de forças. Se não for mensaleiro, se não tiver que salvar o próprio pescoço, será que os deputados distritais vão arriscar suas reputações para defender um governo que saiu do páreo eleitoral, que nada agregará ao que é o objetivo final do jogo político, ganhar eleições? O tempo dirá se este artigo é mera torcida ou análise.
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