Bajonas Teixeira de Brito Junior *
Na segunda-feira passada (5), a lei contra o preconceito de raça ou cor fez 26 anos. No dia 31 de dezembro, cinco dias antes do aniversário da lei, morreu Ana Alves Machado Reimão, de 44 anos, negra. Morreu de uma simples crise de asma, na Zona Sul do Rio de Janeiro, local que dispõe de uma das maiores concentrações de hospitais e pronto-socorros do país. Moradora do morro de Santa Marta, encravado em Botafogo, ela foi levada até uma viatura da polícia pelas amigas. Os policiais se recusaram a socorrê-la, alegando falta de gasolina. Não era verdade.
No dia 8, no protesto contra o aumento das passagens de ônibus no centro do Rio, Thamires Fortunato, coincidentemente negra, foi arrastada pela calçada de pedras portuguesas no Centro do Rio. Logo depois, um policial, vestindo armadura articulada, daquelas que foram compradas para prevenir ações terroristas durante a Copa, senta-se em cima dela (da menina terrorista, estudante de Filosofia). Ela grita desesperada porque sente muita dor no braço. O policial, com muita calma retira da armadura a algema, isso parece demorar minutos. No vídeo, fica claro que ela grita: “Ele vai quebrar meu braço”. Os policiais ao lado, ameaçam quem tenta ajudar Thamires.
A esses dois casos, junta-se o de Mirian França, presa por ser negra em Fortaleza no dia 29 de dezembro de 2014. Será de se admirar que esses casos tenham acontecido no espaço de pouco mais de uma semana? Não. Violências contra mulheres negras são cotidianas. Contra elas e seus filhos. Na favela do Rio, uma mulher negra, Célia Regina Conceição, perdeu a sua segunda filha grávida durante uma ação policial neste final de 2014. Para que se entenda bem: sua filha mais velha estava grávida de oito meses quando, durante uma operação policial na favela em 8 de janeiro de 1994, foi morta por uma bala perdida. Agora, em 26 de novembro de 2014, 20 anos depois, outra filha, também grávida, também durante uma ação policial, foi morta por bala perdida na mesma favela.
Em março de 2014, Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, também foi morta durante uma troca de tiros entre policiais e bandidos. Os policiais disseram que, ao perceber que estava viva, a colocaram no camburão para levar a um hospital. Só que, fato interessante, para seu maior conforto, foi posta na caçamba do veículo. A caçamba se abriu e ela foi arrastada pelo asfalto um bom pedaço. Ainda no Rio, em abril de 2014, a mãe do dançarino do Esquenta, morto em 2013, DG, Fátima da Silva, foi ameaçada de morte quando fazia uma caminhada na Lagoa, logo após fazer declarações contundentes sobre o assassinato do filho.
O que há de comum entre todas essas mulheres? Vejam as fotos, comparem-nas, e a conclusão será imediata: todas são “pretas demais”.
Quando foi escolhida Globeleza, a modelo Nayara Justino ouviu do lamentável humorista Danilo Gentili, portador de um título de impunidade expedido pela Justiça brasileira ― sim, foi ele quem perguntou a um negro quantas bananas queria para acabar uma discussão, foi processado, julgado e absolvido por ser um bom rapaz branco e bacana ―, pois bem, Gentili, disse que Nayara, a modelo, era o João Pequeno – nome de personagem envolvido no mundo do crime no filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Olha que criança sapeca é o Gentili. Ou seja, ele chamou a menina de bandido. A modelo, logo depois, foi demitida pela Globo. Ora, faz sentido: nas redes a modelo havia sido muito “criticada” por ser “preta demais”.
Quando foi absolvido de racismo no caso das bananas ― um episódio em que perguntou, brincando, a um negro quantas bananas ele queria para acabar uma discussão ―, Danilo Gentili foi obrigado a ler na sua sentença uma bronca do juiz. Veja só. Uma bronca. Escutem: “O réu tem que entender que há limites para as brincadeiras, ainda mais quando direcionadas a um indivíduo específico“. Gentili entendeu bem, e já fez de novo: chamou a modelo de bandido. Prestem atenção na lógica da impunidade. O juiz 10ª Vara Criminal da Justiça de São Paulo diz que existem limites. Mas os limites, ele esquece, são determinados nas leis. Se Gentili ultrapassou os limites prescritos na lei, se cometeu crime, deveria ser punido. Mas não o foi. A lei contra o racismo, que tinha feito 25 anos na época, 2014, ficou como letra morta e enterrada.
Hoje, depois que esse e muitos outros juízes se furtaram a aplicar a lei contra os crimes de preconceito e cor, o racismo prolifera e viceja na internet. Há milhares de fãs de Gentili imitando o seu estilo nas redes. Nas recusas por juízes em aplicar a lei, reside a explosão de crimes de ódio, mas também de práticas violentas, que deparamos em 2014 e, já pressentimos, irá vazar cada vez mais, das redes para a realidade no decorrer de 2015. Veja essa pequena pérola do leitor Renato Maciel, que comentou o texto O inferno de Mírian o céu de Eike e Guilherme, no Facebook do Congresso em Foco:
Ao fazer sua agressão às mulheres negras, e depois redobrá-las atingindo os nordestinos, nosso amigo está aqui auferindo gozo erótico. É bem característica a junção de erotismo e sadismo, e, no Brasil, em que parte da prática erótica dos brancos fazia-se com as negras escravas (“havia os que só gozavam com negra”, escreveu Gilberto Freyre), e que, até bem pouco tempo, se dizia que os jovens de classe média tinham sua iniciação sexual com as empregadas domésticas, na maioria negras, a tendência é ainda mais forte.
É porque o sadismo erótico é parte da gratificação incluída no pacote do preconceito, que um seriado como Sexo e as Negas é profundamente nocivo para a afirmação social das mulheres negras.
Todo tipo de ressentido, frustrado, preterido, portador de ódios engasgados, de sensação de inferioridade, pode descontar sobre os negros. Imagine-se, por exemplo, que um humorista como o Gentile tivesse a voz infantilizada, de pré-adolescente crônico, que ele tentasse esforçadamente disfarçar, mas sem êxito. O cidadão poderia descontar seu déficit de testosterona atacando a integridade dos negros. E até ganhar dinheiro com isso. Tem melhor?
Foi o Wendel Bezerra e a distribuidora Diamond Films [que me convidaram]. Além de gostar do Paddington, minha voz combinou com o urso. A minha voz é mais infantil (risos), não condiz com o meu tamanho e casou direitinho“, diz Danilo Gentili sobre sua primeira dublagem.
Não condiz com o seu tamanho? Que nada, Gentili, fica frio. Condiz sim. Seu tamanho não é maior que a sua voz, pode ficar tranquilo. É até menor.
Mas o que leva essas pessoas a cometerem suas atrocidades, e ainda irem mais longe quando confrontadas, como o leitor Renato Maciel em seu comentário citado acima? Ora, qualquer criança sabe: é a impunidade. Renato Maciel nunca será punido. Não é nada de sobrenatural, misteriosamente inacessível, alguma coisa transcendental, nada disso. É algo bem terra a terra, pão pão. Coisa trivial. Essa coisa muito trivial é que a Justiça brasileira não pune os racistas. Maciel está apenas imitando Danilo Gentili e sabendo que vai ficar impune como ele. E ai do negro que reclamar. Será xingado de novo. Agora de racista.
Ai está dado o sinal para todas as outras violências. Não só contra as mulheres, mas também contra os jovens negros. Embora as chacinas contra meninos de rua, nos centros de cidade, estejam em nível baixo, nunca se matou tantos jovens negros nas periferias das grandes cidades. E ainda querem reduzir a maioridade penal. Por quê? Porque durante décadas, o assassinato de “pivetes” (pivete é uma palavra de origem francesa que começou a ser usada no Brasil na primeira década do século XX) foi um dos esportes preferidos nas grandes cidades brasileiras. Desde o início do século XX essas crianças foram assassinadas sem piedade, quem viveu os anos 80 praticamente não passou uma semana da sua vida sem deparar com matérias nos jornais sobre assassinatos de “pivetes”. Mas, depois da Chacina da Candelária, houve um freio. A própria sociedade racista recuou assustada com o ponto a que fora capaz de chegar, indo ali, na soleira da Catedral, para assassinar crianças que estavam dormindo. A reação foi um freio na matança. Desde então, a própria palavra pivete sumiu dos jornais.
Hoje o termo pivete está voltando. Já várias chacinas isoladas aconteceram pelo país. Reduzir a maioridade penal significa estabelecer um parâmetro, uma nova navalha jurídica, que permitirá matar sem culpa. Não serão crianças que estarão sendo assassinadas, mas sim “maiores penais”, ou seja, gente já graúda para receber os rigores da lei. A lei para negros, pobres e índios, a lei do cão. O abjeto humorismo de classe média tem seu quinhão nisso tudo. Seus anátemas contra os homens e mulheres negros se espalham.
A classe média, grupo social ao qual pertence a maioria dos desembargadores, juízes, promotores de justiça, defensores, enfim, quase todo o mundo judiciário, está, através das redes sociais, sendo bombardeada dia e noite com uma visão sinistra contra os negros.
No Brasil, o humorista racista pode se lambuzar em piadas ignóbeis contra os negros, e, ainda de quebra, acusar os negros de introduzirem o racismo no país. Ninguém nota a contradição. Esse é universo sem contradição, é a terra do Nunca, a terra prometida, o país de Cocagne , o Éden, e o Shangri-la dos racistas de todas as confissões. Só as drogas mais potentes deixam as pessoas embebidas no sentimento de flutuar fora dos constrangimentos e limitações da vida. Assim é o racismo brasileiro. É puro prazer. É o crack de um segmento facínora da classe média. Seus noiados se entregam à fantasia de transformar suas vítimas em culpados.
Disso temos uma ilustração perfeita em outro comentário. O discurso contra o crime de ódio, contra o racismo, é colocado na boca do assaltante de modo a deixar claro que os que hoje sofrem o ódio (a mulher, o negro, o índio, a criança de rua, etc.) é que são bandidos:
Isso é sem dúvida irreal, uma falsificação da realidade. Mas quando toda uma malta de zumbis viciados em racismo compartilha, curte e recomenda os mesmos delírios, os fantasmas se tornam reais. Os crimes de ódio crescem 84% durante o segundo semestre de 2014, o período eleitoral que elevou a excitação na brancolândia. ‘Brancos’ que, quando pedem filiação em partidos nazistas europeus, depois de ouvirem uma sonora gargalhada, são rejeitados por deficiência eugênica.
Pois é. Os negros estão sendo acusados de racismo. E mais: de estarem contrabandeando também a “luta de classes” para o país. Na primeira vez que culparam os negros pelo atraso do país, no século XIX, trouxeram milhões de imigrantes europeus para substituí-los. A ideia era que, sem trabalho, iriam morrer de fome e desaparecer da face da Terra. Ou melhor, da face do Brasil. Agora, novamente se culpam os negros pela situação do país. O que virá, não sabemos.
A situação no momento é grave. Talvez muito grave. Como combatê-la? É difícil saber. A história apresenta sempre uma constelação singular, diferente de todas as outras. Quem se vê numa situação que nunca viveu antes não sabe bem o que fazer e, com muita frequência, comete os maiores erros. Mas uma coisa é certa: os negros estão sendo arrastados para o isolamento, para um canto do ringue, e serão massacrados se não conseguirem sair dai.
Talvez seja preciso começar rompendo o isolamento através da criação de uma forte aliança de todos os movimentos sociais. Em segundo lugar, será preciso denunciar com todas as forças o aviltamento que a lei contra o preconceito de raça e cor vem sofrendo no país. Como está sendo cancelado nas sentenças que vão se acumulando. E como, fazendo uma rápida inspeção nos comentários racistas nas redes, parece que a lei já foi anulada na prática.
É preciso que se consiga mostrar ao Judiciário brasileiro, em especial em suas esferas mais altas, a necessidade de extirpar toda a cumplicidade racista do meio judiciário. Não fica bem. Que advogadas complacentes ou acumpliciados com atos racistas sejam eles mesmos julgados por racismo. Isso requer criar um grupo de atenção permanente sobre os crimes de ódio. Ou seja, um Observatório Dos Crimes de Ódio. Quando boa parte do país é vítima da violência simbólica dos crimes de ódio nas redes, não será difícil unir forças e pressionar o judiciário a combater todos os crimes de ódio.
A Lei nº 7.716 é hoje uma letra morta, que tem de ser ressuscitada. Ninguém deve ter mais o privilégio de ser racista. No dia, ou melhor, na hora, exatamente na hora, em que o primeiro humorista engraçado for condenado por atos racistas, em que receber sua primeira sentença, e o sorriso murchar na sua boca, os crimes de ódio na internet vão começar a emudecer.
As duas jovens estudantes negras mencionadas neste artigo, a estudante de Filosofia da Universidade Federal Fluminense Thamires Fortunato e a estudante do doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro Mirian França sofreram brutais violências (morais num caso, físicas e morais em outros). E qual foi o crime? O crime das duas foi o de serem “pretas demais”. Ambas são guerreiras. Vamos lutar por elas. As agressões sofridas por Thamires Fortunato estão no Youtube. Ela será processada pelas escoriações, hematomas e humilhações que agora carrega e pelos palavrões que ouviu.
* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate.
Leia ainda, do mesmo autor:
O inferno de Mirian e o céu de Eike e Guilherme
Dúvidas sobre a prisão da jovem negra no Ceará
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