Renata Camargo
A grave crise política que se instalou na capital federal desde a semana passada revela como os interesses e as ambições de particulares estão desqualificando a qualidade de vida da população. O inquérito da Operação Caixa de Pandora da Polícia Federal sobre o esquema de corrupção envolvendo a alta cúpula do governo do Distrito Federal faz um breve relato sobre o jogo de interesses de construtoras e empresários do setor imobiliário na aprovação do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF (PDOT), um projeto – hoje lei – anômalo do ponto de vista ambiental.
O PDOT é um instrumento utilizado para organizar a ocupação nas cidades. Por ele, se define para onde é possível expandir a ocupação urbana, quais lugares não podem ser habitados por terem recursos naturais fundamentais, quais os pontos em que serão necessárias áreas de preservação para melhor gerir a vida nas cidades, e outras decisões estratégicas para manter uma melhor qualidade de vida para os moradores.
No documento da PF, Durval Barbosa, o mentor do escândalo, relata que Marcelo Carvalho, diretor do Grupo Empresarial Paulo Octávio (grupo do vice-governador, empresário do setor da construção e imobiliário), “foi um dos responsáveis pela distribuição dos valores arrecadados para pagamento de deputados distritais em razão da aprovação do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF”. Durval reforça que “o dinheiro era arrecadado entre as empresas que se beneficiaram com a aprovação do novo PDOT”.
A informação tem passado batida pela imprensa, muito provavelmente por falta de interesse (entre aspas) da mídia local e por ausência de conhecimento mais aprofundado sobre o assunto por parte da imprensa de outros estados. A questão é que o PDOT é um verdadeiro tiro no pé dos habitantes do Distrito Federal e arredores e uma mina de ouro para empresários, governantes e oportunistas do setor da construção civil e imobiliário. Uma herança que vem de governos anteriores, agravada pela gestão do ex-governador Joaquim Roriz, que tem muita culpa no cartório.
O PDOT foi aprovado pelos deputados distritais da Câmara Legislativa do Distrito Federal em dezembro do ano passado. Entre os distritais, estavam os quatro diretamente acusados de receber propina para aprovar matérias de interesse do Executivo local. Um deles, o presidente, agora licenciado, da Câmara, Leonardo Prudente, aquele que aparece em vídeo colocando dinheiro na meia, na época líder do governo. Outra, a deputada Eurides Brito, aquela que fecha a porta para receber bolos de dinheiro, também mostrado em vídeo. Eurides, inclusive, foi uma das relatoras do projeto do PDOT.
Foi ela quem deixou claro que a Câmara Legislativa ignoraria os questionamentos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) sobre o PDOT (Leia a recomendação do MP). Em março deste ano, quando os apontamentos do MP foram feitos, Eurides disse que descartaria qualquer possibilidade de alguma emenda aprovada pelos distritais não constar na redação final do PDOT. Assim o fez. Na ocasião, a deputada explicou que a redação final havia sido preparada com “todos os cuidados”.
E que cuidados foram esses? Os distritais tiveram o cuidado de desconsiderar um alerta feito pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram), órgão do governo do DF, e da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb), responsável pelo abastecimento de água da cidade. O alerta prevê escassez de água na região nas próximas décadas, caso as áreas previstas para expansão urbana no PDOT forem consolidadas. O alvo maior de críticas é o Setor Habitacional Catetinho, a ser construído em uma Área de Proteção de Mananciais (APM), com até 25 mil moradias.
Tomaram o cuidado também de transformar áreas rurais em área urbana sem considerar a capacidade de suporte e integridade dos ecossistemas naturais de cada localidade. Ao transformar a área rural em urbana, intensifica-se o povoamento local, aumentando o impacto humano, a quantidade de água utilizada, a deposição de lixo, o volume de esgoto, etc. Uma dessas áreas está localizada na reserva ambiental do Tororó, às margens da DF-140, onde estão construindo um condomínio de luxo da linha Alphaville.
Os deputados tiveram, na verdade, o cuidado de aprovar a construção de vários novos condomínios para a classe alta e média alta, ignorando que o déficit habitacional brasileiro está nas classes baixa e média baixa. Cuidaram também para dar a devida publicidade ao texto do PDOT. Realizaram 12 audiências públicas e três seminários sobre o plano diretor e, para o texto final, desconsideram as vozes contrárias e sumariamente aprovaram o projeto sem que a população conhecesse o texto final.
Os distritais tiveram ainda a sensibilidade apurada para descartar os pareceres de entidades ambientais, que explicitaram que não há necessidade de criar novas áreas de expansão urbana no Distrito Federal. Segundo estudo feito por Mônica Veríssimo, da Fundação SD – Sustentabilidade e Desenvolvimento, há no DF espaço urbano suficiente para abarcar o crescimento populacional dos próximos 12 anos. (Leia o parecer da fundação sobre os problemas do PDOT)
A população do DF e entorno soma cerca de 4 milhões de habitantes, com crescimento em razão de 100 mil pessoas por ano – uma das maiores taxas de crescimento populacional do país. Brasília se localiza no coração do DF e junto com Taguatinga, cidade-satélite da capital, concentra 80% dos postos de trabalho da região. Estima-se que 55% da economia local seja sustentada pelo funcionalismo público. Isso explica porque em meio à recente crise financeira mundial, o mercado de luxo em Brasília tenha crescido 20%.
Esse perfil de boa parte dos consumidores da capital, característica advinda do serviço público, também explica, em parte, a estratégia ambiciosa do setor da construção civil e imobiliário no DF. Não há crise, então empresas como JC Gontijo, cujo presidente é citado nos autos do inquérito, se aproveitam de uma renda estável para parcelar o DF, com lucro garantido. A preços exorbitantes vendem uma quitinete na planta por meio milhão, em um bairro que está sendo construído em área que era reserva indígena (Setor Noroeste).
É muito imprudência e sujeira para uma única Caixa de Pandora. Brasília está à venda sem consentimento da população. Os argumentos técnicos para desqualificar o PDOT já estavam explícitos, faltava apenas um escorregão dos grandes para evidenciar o esquema político/empresarial por trás da aprovação de tal anomalia. Portanto, o PDOT tem que ser anulado, total ou parcialmente, por ser um impacto ambiental, urbano, patrimonial e cultural de dimensões calamitosas.
O Ministério Público deve aproveitar a conjuntura e entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) no Supremo para derrubar esse plano diretor. Como alertou Mônica Veríssimo, “o PDOT é uma peça-chave para a questão de toda essa roubalheira do governo Arruda”. A União também não pode se esquivar dessa responsabilidade. O Distrito Federal está dentro da APA do Planalto Central (Área de Proteção Ambiental), que é área da União.
Diante de tudo isso, para os que ainda conseguem acreditar no futuro, deixo um pouco de esperança no fundo dessa Caixa de Pandora. T
Deixe um comentário