A biscate virou paisagem na memória. Que também não é mais memória: a minha pelo menos transformou-se num arquivo poeirento largado às traças de uma melancolia que não interessa a mais ninguém. Daí que a biscate não mais existe. Mesmo assim, sinto-me orgulhoso por ter elevado as biscates e os mamilos do meu avô (entre outros mandiopans-madeleine) aos píncaros da glória literária.
Mas não foi só o meu passado que brochou, o passado em geral e as décadas de 50, 60 e 70 do século passado que me interessavam especialmente, inclua-se o hóliude sem filtro aos mamilos do velho, não interessam a mais ninguém.
O tempo foi suicidado e eu fui a reboque, de modo que, hoje, arriscar uma lembrança e cotejá-la com os dias que correm, pode até dar cadeia. Da ficção pro crime. E se porventura dos escombros da alma emergir qualquer esboço de humor e/ou ternura, aí é que a pena é agravada. Assim, num primeiro momento, não só as biscates, mas toda uma legião de enjeitados afetivos (me recuso a destrinchar essa expressão, entendam como quiser… ) transformam-se em vítimas.
De acordo com o código penal da legião do bem, é crime e fica proibido:
Artigo 1: qualquer tipo de humor que desqualifique grelos e genitálias, independentemente de o agente chupar ou ser chupado.
Parágrafo 1: pena de execração pública mais oito anos de prisão sem direito a recurso para o escritor que tocar no e/ou bolinar o assunto.
Parágrafo 3: Se o prazer vier acompanhado da locução e/ou descrição do grelo citado, pena de prisão perpétua.
PublicidadeE por aí vai. Assim o “viadinho cultural” e tantas outras jóias do imaginário da Casa ao Lado passaram da estima à condição de vingadores, carrascos implacáveis que eliminam os desafetos em nome da igualdade.
Espelhos não mais os há.
Do outro lado apenas a obrigatoriedade chapada da nova ordem. Os novos filhos de Maria, paridos e justificados pela virgindade angelical, irrompem de dois mil anos de arco-íris, e anunciam a ressurreição e a volta de – pasmém! – Auguste Comte e Plínio Salgado. Quem diria: o positivismo e o integralismo do final do século XIX e das primeiras décadas do século passado, voltaram às ruas travestidos de drag queen. Basta substituir as palavras de ordem para entender a gambiarra: no lugar de Tradição, Familia e Propriedade, leia-se Igualdade, Inclusão e Dignidade.
Não sou nenhum Barthes, mas aqui na minha semiótica de butiquim, arriscarei uma explicação. Até criei uma neologismo pra me ajudar: “modus-decalque”, quer dizer, a maneira pela qual a palavra é sequestrada ou desapropriada de sua origem em função de um interesse de classe mesquinho.
Pois bem, quero dizer que o “modus-decalque” dos opostos não é tão diferente assim. Da mesma forma que a Ordem e o Progresso grudaram no positivismo, e a Tradição, a Família e a Propriedade se associaram ao integralismo, os lemas do arco-íris e da defesa das minorias também se agruparam umbilicalmente em torno de expressões-presídio escolhidas, digo, subtraídas à mão larga; hoje em dia é quase impraticável falar em “igualdade” se voce não for negro, inviável sugerir “inclusão” se voce não for morador da periferia e impossível conjecturar em “dignidade” se voce não for gay. Como se essas palavras,e um monte de outras “atitude”, “movimento” “afetividade”, “engajamento”, “civilidade” etc. etc. tivessem sido sequestradas, e fora disso não há diálogo, não há possibilidade de convivência e intersecção. Ou você veste a camisa do grupo e marcha pela paz e pela família (não interessa por quais orificios essa família se organiza e se autodestrói) ou estará sumariamente eliminado das verbas, editais e do dinheirinho público.
Tolere-me, ou devoro-te.
O resultado disso – óbvio e ululante – é a intolerância. A intolerância que, no final das contas e apesar de todos os malabarismos para dizer o contrário, virou regra e denominador comum.
Nessa nova ordem não existem biscates, nem grelos chupados. Tampouco sargentas, nem marafonas. Não dá para pensar em João Antonio. Um livro como Casa de loucos não seria publicado em 2013. Sob esse ponto de vista colorido e positivista, Zé Pilintra, o rei da boca, estará condenado inapelavelmente ao expurgo. Obscurantismo não é exclusividade malafaia. Valha-me, São Jorge!
Se o fulano juntar as palavras “grelo” e “biscate” numa frase, ou seja, se ele cogitar de chupar o grelo de uma biscate é capaz de ser mandado pra Sibéria e terminar seus dias quebrando pedras num romance de Dostoiévski. E o mais bizarro: no lugar das biscates – acho que foi só pra tripudiar de nosotros que gostávamos de uma rapariga – entraram em ação os travestis (a palavra é essa mesmo: “entraram”). Cadê as putas?
Quer esquina? Quer puta, seu machistaescroto? Então leva quentinha com linguiça nas idéias.
As linguiças perderam o trema e descobrimos (ou nos forçaram a crer) que Walt Disney é mais libidinoso que Nelson Rodrigues. O problema é trocar o tesão de lugar. Não é nada fácil, na cabeça de um tiozinho de mais de quarenta, substituir os cabaços do Pintanguy pelo nariz constipado do Atchin ou pelo esfíncter do Dengoso. Haja libido.
Saudosas putas, marafonas, biscates. A sem-vergonhagem virou atitude. Os peitinhos muxibas se insurgiram (como se fosse possível desafiar a lei da gravidade) e trocaram a ternura pelo protesto. Tão triste vê-los maltrados por suas donas femens. Nunca mais a compaixão despertada por um peitinho muxiba caído entre os dentes. Do lugar que poderia nascer o amor brota a revanche: nunca mais o pierrô apaixonado vai chorar no colo de Valdirene.
Só resta engolir as lágrimas, pelo pierrô que sou eu mesmo, por Valdirene, e por minha memória – isso ninguém, protesto algum, nenhuma sentença de morte, nem que o pelotão das fémens me fuzile com suas nudezas bélicas, nada vai me impedir de engolir minhas lágrimas pelos saudosos muxibinhas de Valdirene.
Enfim. Uma lástima na vida de um escritor ter a memória sob tutela e, não bastasse, ter as palavras que faziam a ponte entre o etéreo e o rés-do-chão, condenadas ao opróbio. Exu Caveira perdeu a vaga de manobrista no cemitério. Pomba-gira que não se atreva a dar trela pra vagabundo. Zé Pilintra, meu chapa, tu vai ter de encarar os travecos se quiser dar expediente na malandragem. Putaria nunca mais.
Daqui pra frente, serei obrigado a tratar não só as palavras, mas a impudicícia e as irrupções venéreas, os arroubos, as lembranças e o veneno dos desejos, os tratarei como entes queridos que faleceram, restará a saudade que se esgotará nos ais de quem nunca mais irá se debulhar no ventre de uma putinha distraída. Ah, as putas. Eu as frequentei com tanto amor e dedicação, putas, primas, biscates. Usufrui, bolinei, gozei, usei e abusei da palavra e das biscates propriamente ditas: adormecidas sobre mim depois da labuta, ah, Marisete que veio antes de Valdirene, minha putinha preferida, nunca mais a desalojarei do meu peito (e voce não mais fingirá torpor de Cinderela) para logo em seguida despertá-la e sussurrar ao pé d’ouvido: “Acorda biscate, o café e as flores estão na mesa”. Acabou.
C’est fini. Nunca mais o fortuito e pornográfico. No lugar do esgar a inclusão, no lugar da lua cheia a cidadania chiliquenta, trocamos Roberto Carlos por Auguste Comte e Plínio Salgado, íncubos que se retroalimentam com o monocórdio bate-estaca-soca-merda angelical. É isso.
Podem me algemar.
PS – Na ocasião da tragédia de Realengo, eu já havia gritado. Ninguém deu bola. Mas vamos lá, de tragédia em tragédia, quem sabe, alguma hora algum iluminado me ouça. Senhores legisladores, proponham uma lei que proíba a veiculação do nome e da imagem de serial killers e terroristas em geral (incluindo a família). Esses vermes não têm ideologia. Ou melhor, a ideologia deles é, mesmo depois de mortos, APARECER. Os senhores já ouviram falar em sociedade do espetáculo? Taí, é isso. Se um animal desses souber que o rostinho dele não será divulgado ad nauseam pela imprensa-urubu, garanto que vai pensar duas vezes antes de metralhar crianças indefesas, explodir bombas etc, etc. Corram, antes da próxima tragédia!
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