Márcia Denser*
Nos 454 anos desta Paulicéia, que não é mais Desvairada, pensar na figura emblemática e no legado de Mário de Andrade (1893-1945) é evidenciar – talvez a palavra fosse “atualizar” – a crônica indigência e hipocrisia política e cultural brasileiras.
São Paulo é tema central da obra deste Mário que, sendo autodidata, precisou fazer investimentos tão grandes que acabou cobrindo quase todos os domínios artísticos e científicos da época (literatura, belas-artes, música, folclore, etnografia e história) ao preço de permanecer solteiro e misógino toda sua vida, segundo Sérgio Miceli, “em companhia da mãe, da madrinha, da irmã mais moça e da preta Sebastiana, pois são essas algumas das condições que lhe permitiram levar a cabo o projeto de ser um intelectual total nas condições da época”. Em síntese, um polígrafo.
Mas São Paulo seria apenas o começo para este modernista empenhado em inventar um projeto de país que incluísse todos os aspectos da diversidade cultural brasileira, projeto que iria materializar-se em 1935.
Ainda segundo Miceli, o Departamento Municipal de Cultura, implantado durante a gestão do prefeito Fábio Prado, resultou do projeto elaborado por um grupo de intelectuais da oposição democrática liderados por Paulo Duarte e Mário de Andrade, nomeado diretor do Departamento.
Comenta Paulo Duarte: “Nós sabíamos que o departamento era o germe do Instituto Brasileiro de Cultura. Primeiro, um Instituto Paulista, depois, com Armando Sales na Presidência da República, seria o Instituto Brasileiro, uma grande fundação libertada da influência política, com sede no Rio, núcleos em Minas, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Ceará. Tivéramos uma idéia genial que Armando Sales aprovou: os institutos de cultura assistiriam todas as grandes cidades com a colaboração da Universidade, porque não comportando todas elas uma faculdade, teriam contato íntimo com esta através de conferências, cursos, teatro, concertos. O Departamento de Cultura era apenas o início. Entusiasmado com esse início, Armando Sales de Oliveira inscreveu-o no programa com o qual se apresentava para a Presidência da República”.
O mais estranho é que este Mário, no princípio, não só era apartidário como também apolítico, segundo alguns autores, uma vez que “não tomou partido na Guerra de 14-18, pouco ligou à Revolução de 1924 e muito menos à Coluna Prestes e mais: na longa correspondência que manteve com Manuel Bandeira, não havia uma só palavra sobre política!” (Miceli)
Contudo, a ambivalência dos sentimentos em Mário não é novidade, afinal ele é trezentos senão for trezentos e cinqüenta, e esta se explica por uma crença no retorno dos valores universais e eternos do homem de espírito. Assim, caminhando pela terra do “pragmatismo”, ele se aproxima do Departamento de Cultura, já que não podia mais agüentar ser um escritor sem definição política. Mário, que já havia se “suicidado” na década de 20 por fazer “arte de ação”, agora se “suicida” uma segunda vez: “seria uma suicídio satisfatório e me suicidei”, diz ele.
Não foi. Sem mais aquela, da noite para o dia ele veria desfazer-se seu trabalho.
Silviano Santiago comenta: “Mário toma posse e descobre o inevitável: a máquina burocrática emperrada, as limitações de verba. Também recebe o departamento com pessoal completo e já nomeado. Sobram-lhe alguns cargos técnicos. Entre os possíveis, fica para Oneyda Alvarenga o de “discotecária”, isso se o Prefeito não cortar a verba pedida pra Discoteca. (…) A simpatia pela causa paulista termina de maneira drástica e trágica para Mário, como atesta em carta escrita a Rodrigo de Melo Franco em 14 de junho de 1938, onde fala de sua intenção de buscar emprego no Rio: ’Qualquer coisa serve, quero partir, agora que já ficou provado que não roubei nada nem pratiquei desfalques. Só isso me interessava saber e está provado pela devassa que fizeram’. Sob pesadas e injustas acusações, Mário é posto na rua em 1938”.
A Carlos Drummond de Andrade e outros amigos que correm a ajudá-lo, ele avisa: “Apenas noto um engano em vocês todos, amigos bons demais. É o esforço de me dar um posto elevado e com melhores vencimentos. Pois juro a vocês que isso não é da minha preferência agora. Prefiro mil vezes um posto que me conserve na obscuridade, subalterno de outros que mandem em mim e a quem eu obedeça sem responsabilidade. Quero escuridão, não quero me vingar de ninguém, quero escuridão”.
No Rio, Mário chega a diretor e catedrático do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, mas é a São Paulo que deixa seu testamento poético: afinal não é para casa que retornamos antes de morrer?
Ele escreve:
"Meus pés enterrem na rua Aurora
No Paissandu deixem meu sexo
Na Lopes Chaves, a cabeça esqueçam
No Pátio do Colégio afundem meu coração paulistano”
Obras Consultadas:
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira, pgs.105, 108, 251/256. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da Letra. “O intelectual modernista revisitado”, pgs 165-175. São Paulo,Companhia das Letras, 1989.
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