Márcia Denser
Até o final da década de 80, o traço mais marcante das literaturas sul-americanas era o cunho militante do escritor, levado com freqüência a participar da vida política e dos movimentos sociais, em boa parte porque as condições do meio o empurravam nesse sentido.
Segundo Antonio Cândido**, isso produzia duas conseqüências. A primeira é que a atividade intelectual se tornava um ato de participação, até de militância, na medida em que seria uma afirmação de cultura em meios pouco desenvolvidos culturalmente. De modo que a produção literária se tornava, duma perspectiva "ilustrada" que vinha de longe, contribuição para construir a nação. A segunda conseqüência é que o intelectual tendia a se politizar no sentido estrito, muito mais do que na Europa ou nos Estados Unidos, isto é, em países cuja sociedade e cultura estivessem sedimentadas há muito tempo. Um exemplo bem conhecido é a contribuição significativa do nosso "ensaiísmo", tipo Casa Grande & Senzala de Gilberto Freire, para a formação do pensamento científico brasileiro.
O panorama literário era assim há menos 30 anos, mas não parece que tudo isso ocorria há séculos? O fato é que tais condições, estáveis durante meio-século, se transformaram radicalmente – porque as transformações globais se aceleraram – em poucos anos. Com o colapso dos projetos nacional-desenvolvimentistas (e do socialismo real), provocados pela elevação dos níveis de tecnologia e produtividade do capital, a partir de 90 o estatuto e a função das literaturas em todo mundo começou a mudar.
Essas transformações – que foram impostas, forçadas pela "lógica cultural do capitalismo tardio" – favoreceram o surgimento de escritores e críticos literários caracterizados por uma postura acrítica (o que em si é um absurdo!), conformista, mercantilista. Eles colocam a criação a reboque do mercado e da voracidade midiática, e sua produção se realiza aquém de qualquer critério estético, fora do contexto político-social. Assim, conforme foi dito dos seriados Mandrake e Filhos do Carnaval na coluna "Cinema & Ideologia", atualmente também se faz "literatura com claustrofobia".
A propósito, chamo atenção dos interessados para o II Encontro Internacional de Poesia, que se realiza entre maio de junho em Campinas. As propostas abordam essas e outras questões cruciais (acessáveis no site www.germinaliteratura.com.br)
Diante da institucionalização da violência econômica, dos signos da cultura de mercado que se impõe globalmente, povos, nações, continentes, culturas e artes entram em colapso, se homogeneízam, se descaracterizam, ignorando-se séculos de depuração e refinamento.
Encarando realisticamente nossa vivência histórica: questões como a formação da literatura e cultura brasileiras, bem como a inserção destas nas especificidades das literaturas sul-americanas citadas acima, não se tornaram irrelevantes, tampouco anacrônicas, só foram interrompidas, suspensas, adiadas pelo presente intervalo de barbárie.
** In "O Olhar Crítico de Angel Rama", Antonio Cândido, Recortes. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
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