Novamente me fisgo pensando na Aclimação, esse bairro tão próximo e ao mesmo tempo tão distante de tudo: Quelquepart Island, ilha fora do tempo em meio a ladeiras intransponíveis. Na Aclimação ou no que restou dela para além dos conjuntos habitacionais revestidos de pastilhas azuis, lembrando monstruosos banheiros virados do avesso onde as pessoas não habitam, se debatem. Surdamente.
Para além da Japantown com suas lanternas e cortiços, a viscosa feira vermelha, sua promiscuidade por detrás de cortinas de bambu, tanto saquê e sorrisos untuosos e pequenos assassinatos, sua máfia de olhos de arroz. Para além da poluição que na verdade eu nunca soube especificamente a que atribuir, se aos automóveis, à proliferação de tinturarias, às frituras dos restaurantes ou aos coreanos clandestinos desembarcados em Santos, para além de quinze, vinte anos atrás quando a Aclimação era absurdamente (no sentido borgiano, se é que me entendem) uma ilha inviolada no interior da cidade.
Penso nas mansões decadentes cobertas de hera, seguindo por ruas chamadas Esmeralda ou Safira ou Topázio ou Turmalina, desembocando inesperadamente em secretas pracinhas improváveis (Brás Cubas? Polidoro?) com seu tanque de pedra, seu jovem semideus adormecido coberto de limo emergindo por entre gerações de folhas mortas esmagadas por bicicletas fantasmagóricas jamais vistas mas intuídas em seu sinuoso serpentear através de alamedas sombreadas por velhas árvores silenciosas e sempre às cinco da tarde ou da manhã porque o lusco-fusco é a atmosfera permanente desse bairro labiríntico fora do tempo, parecendo se recolher mais e mais para dentro do Parque providencialmente gradeado pela municipalidade para consternação dos traficantes e respectivos clientes e gáudio de tantas babás e bebês e hordas de histéricos executivos fazendo jogging já a partir das seis da manhã.
Mas isso talvez fosse literatura.
Porque se minha juventude existiu nalgum momento entre quinze e vinte anos, foi lá, só pode ter ocorrido lá e digo pode porque não sei, daí procuro no Aurélio “aclimação”: adaptação, ajustamento, aclimatação. Estranho nome para um bairro (ou esse estado de espírito que chamo juventude, essa passagem) que foi se isolando mais e mais da Cidade. Tanto quanto sei, persistem apenas duas linhas de ônibus e com destino ao centro velho, de modo que se alguém precisar ir à Paulista a priori terá que vencer a inexpugnável ladeira Paraíso para atingir o patamar intermediário da Vergueiro e só aí então algum ônibus, o metrô, possivelmente um táxi, porque até os táxis não gorjeiam por lá. Era (é) um percurso curto mas praticamente intransponível, salvo se eu fosse campeã dos cinco mil metros com obstáculos. Mas nunca fui do tipo esportivo, confesso, e não se pode dizer que dançar seja exatamente um esporte, especialmente se praticado de madrugada em recintos fechados.
Mas não será preciso fazer literatura.
Se minha juventude existiu deve ter ocorrido em algum momento na Aclimação. Há um vácuo de dez anos imprecisos de dor que obstinadamente tento esquecer ou não dar importância ou querendo dizer: se a juventude foi só isso então não valeu a pena, mas algo ainda enrijece na treva e obstinadamente (sim, obstinadamente) se recusa a dizer que sim, que talvez fosse possível, que todos aqueles anos que vivi, que vivemos, porque então era o plural, que nós quatro, com aquilo que podíamos chamar família, claro que podíamos, porque foi lá que isso começou a se esmigalhar, miudamente, inevitavelmente carunchado por dentro o edifício do tempo começou a ruir, os pilares do altar onde eles juraram atar sagrados laços eternos que se afrouxaram naquele sobrado da Aclimação, assombrado já por outras vozes, outros pavimentos (may I, Truman Capote?), na mão que já não se completa em carícia, no abraço que se esquece pendente do corpo, no passo que se afasta e se aproxima, que se afasta e se reaproxima, que se afasta e desce as escadas e sai batendo a porta; no soluço enrodilhado no patamar, no tango em diagonal,
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