Alugaram uma quitinete em Copacabana. Seis paulistas dentro de 30 m2. Segundo os cálculos da Su, ia sobrar espaço. Além da Japinha do contábil e da Su, vieram a Lu, a Ki, o Cu e o namorado do Cu. Cu é o irmão caçula da Ki. A Japinha do contábil tem um mapa detalhado de todos os horários e itinerários dos 700 blocos de rua do Rio de Janeiro. Lu comprou as fantasias pela internet. O pacote da Viradouro saiu mais em conta: desfile às 7 horas da manhã e fantasia de baiana por R$ 350 parcelados em até cinco vezes no cartão. Nos outros dias, a Lu e a Ki optaram pelo Suvaco do Cristo e pelo bloco das Carmelitas. O namorado do Cu vai atrás, não desgruda das asinhas do menino-anjo e, de certo modo, realça o diabo meio apagado que existe dentro do garoto. As outras meninas e a Japinha do contábil não tiveram a mesma sorte. No caso delas, acontece exatamente o contrário; uma vez que se relacionam apenas com o diabo que são os outros dentro de seus próprios celulares, daí talvez o despeito e a inveja do pênis no lugar mais inverossímil do mundo: no meio das pernas do namorado do Cu e dentro do próprio.
Ki, talvez por ser a irmã mais velha do Cu, é a que menos disfarça a falta e o “incômodo”, digamos assim.
Quem os vê, o Cu e o namorado, tem a impressão que o fanchona nasceu para alegrar a vida do parceirinho e das vendedoras de canga e óculos escuros. Ele meio que se confunde com aqueles coqueiros de chanchada que os paisagistas espetaram desde o Leme até o Pontal. Não existe nada igual, em matéria de simpatia turística, nada igual ao namorado do Cu. Basta dizer que logo que pisou nas areias do Posto 9, ganhou o apelido de Garupa- de-Anjo.
A Ki acha que ele é um folgado. Ki veio pro Rio com duas ideias fixas: pegar um criolo “tipo um negro” pra ela, e cuidar do irmão mais novo. Na verdade, Ki não tolera o namorado do Cu. O irmão da Ki, o Cu, é viadinho recém-inaugurado: conta apenas 18 anos de idade. Apesar dos pesares, Ki tem o maior orgulho do Cu. Lu, que trabalha no RH, acha que “preconceito sempre rola” e que o Cu é super-resolvido e hiper-corajoso por ter assumido o namoro publicamente. Não sei qual o nome do namorado do Cu, mas vamos chamá-lo ora de “namorado do Cu”, ora de “Garupa-de-Anjo”, ora de “fanchona”. A Ki chama ele de folgado. Bem diferente do Cu, a Japinha do contábil sempre será, em qualquer circunstância, tempo e lugar, a “Japinha do contábil”. Ela, a Japinha, é um epitáfio ambulante: tanto faz se for no Carnaval do Rio ou no festival de boi-mamão da Amazônia. O fato de não existir um festival de boi-mamão na Amazônia não muda em nada a condição da Japinha, nem a condição do Cu e do namorado dele, e nem da Su, que é vizinha de baia da Ki na corretora. Tampouco da Lu, que é bi e não descarta a possibilidade de ficar com a Ki, apesar de a Su já ter deixado bem claro que se a Lu é bi, ela, Su, encara até homem se for o caso. Não obstante, a Ki quer mesmo é descolar um negão pro carnaval, “tipo um preto”, mas não necessariamente homem. A idéia da Ki é se dependurar no tronco junto com o negão tipo um preto, ela tá a fim mesmo de “causar no feice”, o pelourinho virtual. Bem, nem seria preciso dizer que a Lu e a Su a invejam, a curtem, a compartilham e a desejam obsessivamente.
Pra Japinha do contábil, tanto faz.
A galera do administrativo vai surtar quando vir as fotos da Ki se arretando com um negro suado no carnaval do Rio, por isso a Ki não tá dando muita atenção pra Su nem pra Lu, ela só pensa em cuidar do Cu, depois em descolar um “negro tipo um preto” pra ela. Desde que embarcou em Viracopos até chegar no Galeão, Ki apenas vislumbrou o feice abrindo diante de si. Olhava pela janela e, do lado de fora, o azul e branco piscava das nuvens e perguntava: “tá pensando em que, Ki?”. O voo atrasou meia hora, e ela sofreu uma espécie de privação dos sentidos. O celular descarregou. Quase surta. As meninas chegariam apenas no dia seguinte. No total, entre check-in, esteira de bagagem, embarque, desembarque, traslado, chaves na imobiliária etc e tal, Ki passou mais de quatro horas privada de seus kkkk, nenhuma foto, nada de uhhhuuuuu, galera!!!!!. Logo ela, que só pensa em ser curtida e compartilhada, tipo ela e um negro tipo preto vai bombar geral no feice.
“Lá em São Paulo, a gente chama de farol”, é o bordão da galera.
“Pagou a comanda?” É outro bordão. Só que a galera nem desconfia disso, como se fosse a vingança de um coletivo que perdeu a brachola como referência. A partir daí, compram-se passagens de avião e fantasias de Carnaval em cinco, dez vezes sem juros e com um ano de antecedência (decolando de Viracopos). O conveniado também tem o privilégio de ser assaltado na Augusta, embalado por uma rima social estúpida e, não bastasse perder a carteira e levar umas porradas, ainda é obrigado chamar o filhodaputa-do-ladrão-de-artista. O fato de o trouxa ter brotado dos torresmos à milanesa do Adoniran Barbosa ou da corrupção do doutor Adhemar de Barros, não faz diferença alguma. Seja pela frente ou por trás, o paulista/paulistano pagará os gerúndios e os micos de praxe. Tipo assim. Tipo a Su que “acha que ficou super-em-conta” adiantar sete mil reais pela quitinete que se localiza no mezanino de um prédio caindo aos pedaços, logo acima de um ponto de ônibus, na “indevassável” (segundo o anúncio) avenida Nossa Senhora de Copacabana, perto de tudo.
– Meeeeeeeu, tamos no Rio! Chico, Vinicius, Preta Gil, tá ligado?
A Su pensou que o Cristo ficava em cima do Pão de Açucar. As minas e o namorado do Cu também se confundiram, e acabaram almoçando nuggets no primeiro McDonalds sujo e zoado que tiveram a oportunidade de conhecer em toda vida. O Cristo fica lá atrás. Garupa-de-Anjo a cada minuto destoava mais do grupo, chegou até a ensaiar uns rebolados no McDonald’s da Visconde de Pirajá. Maior orgulho do Cu. As meninas seguem numa fila indiana sombria e indisfarçável. Até quando mergulham nas ruas mais ensolaradas de Ipanema, não conseguem se livrar das correntes que arrastam diariamente nos trens da CPTM e depois nas estações do metrô, tanto na ida como na volta. O nome disso é baldeação, ou vida de merda paulistana.
A Japinha, segunda da fila atrás da Su, faz os cálculos e divide todas as despesas por quatro, porque a Ki paga pro Cu e o namorado do Cu nunca ajuda nas despesas. Ki acha que o namorado do irmão, aqui denominado “Garupa-de-Anjo”, além de ser folgado, também é um filhodaputa. Garupa, por sua vez, deve pensar que folgado vai ficar o irmão da Ki depois de um mês de namoro, mas antes disso, Cu é o super-fofo da Ki e da galera do feice. Lá em São Paulo, a gente chama de farol e a Ki, que não perde tempo e é muito objetiva, acabou de sair da fila indiana. Isso é quase um milagre. Ou um “evento”, como chamamos em São Paulo. O criolo não é tão preto como a Ki imaginava, mas é tão folgado quanto o Garupa-de-Anjo. No mesmo instante, ela postou no feice via BlackBerry: “meeeeeus o cara mora no Pavão-Pavãozinho!!!!!” A Su e a Lu ficaram super-a-fim de subir o morro e de curtir – apesar da agenda lotada do Carnaval pré-pago – um baile funk na laje do mulato folgado, a Japinha do contábil compartilhou.
O problema é que o Garupa-de-Anjo também ficou super-a-fim do mulato que a Ki descolou. Pegou pra ele. Inconformada, Ki levou o irmão traído pra ir tomar… um sorvete. Su foi junto. A Japinha do contábil as seguiu, e a Lu que é bi ficou perdida sem saber pra onde ir. Foi a segunda vez que a fila indiana se desfez, péssimo agouro. A Japinha do contábil dividiu a conta da sorveteria por dois porque a Ki pagou pro Cu e pra Su (que esqueceu a mochila na quitinete de 30 m2). A diferença, ou seja, a bola de flocos que a Japinha consumiu e as bolas da Su e do Cu, foram descontadas de um crédito antigo da Ki, lá atrás, e a Ki, que é irmã do Cu, e o Cu, principalmente, respiraram quase aliviados (tá difícil segurar os trocadilhos), embora o mulato do Pavão-Pavãozinho, a essa altura do campeonato, já tivesse contabilizado duas bolas – que não deviam ser de flocos – dentro do namorado do Cu.
Só pra lembrar: lá em São Paulo a gente chama de farol e o Cu é que era o passivo, mas no Rio até Mc Donalds é zoado, portanto a dicotomia entre as bolas-pró e as bolas-contra poderia resultar num gravíssimo problema carnavalesco e jurídico e quiçá ecológico, mas eis que a Japinha do contábil, sempre alerta e atuante com sua cara de pastel e sua calculadora made in China, resolveu o quiprocó; pois bem, graças a Japinha, a ordem na suruba-cinza quase foi reestabelecida dentro da quitinete de 30m2. E o Carnaval da galera virou um funk do criolo brocha sem que ninguém sentisse a falta do Tom Jobim (meno male).
Na sexta-feira, as meninas saíram no bloco das Carmelitas e ensinaram o Cu a fazer xixi de pé. Su gostou do que viu, e acabou se solidarizando com a causa-irmão-caçula da Ki, pensou em chamar o pobre e abandonado Cu pra festejar a noite dos mascarados ao seu lado. Ele curtiu. Adquiriram havainas e KY na farmácia. Su finalmente conseguiu dar um termo ao pintorário que comprara na galeria Pagé. Não foi na Ki, mas foi no Cu.
– Carnaval no Rio, meeeeeeu.
O dia raiou na quitinete de Copacabana, e Cu entregou-se da maneira que a Su quis, o que ela pediu, ele deu. O garoto virou colombina e ela pierrô, depois a camélia caiu do galho, deu dois suspiros e morreu no baile funk do Pavão, mais ou menos nessa ordem e às dez horas da manhã do dia seguinte. I love Rio. Menos um problema pra Ki. Todavia outro problema brotou nas ideias da Ki, feito a hemorróida que estragou a manhã tão bonita manhã do caçula, e parte do Carnaval da Su. Ou seja, Ki não mais precisaria dividir o beliche com a Su nem com a Lu. Pois Su ocupara-se do Cu e esquecera temporariamente da Ki. Su, quem diria, era só cuidado, amor e carinho com o Cu, doce Cu que passou a manhã sentado numa bacia de água morna, mas agora voltamos a Ki.
A irmã do Cu tinha um problema de verdade pela frente: ela teria de negociar o resgate do ex-do-Cu com o mulato do Pavão-Pavãozinho. Isso mesmo, Garupa-de-Anjo fora sequestrado e corria o risco de virar churrasquinho numa laje qualquer da recém-pacificada e mais famosa favela de Copacabana. Por ela, pela Ki, que se danasse o ex-do Cu. Mas, para evitar o desfazimento da fila indiana, Ki chamou para si a parte que lhe cabia, e foi à delegacia acompanhada da Lu, que continuava bi, apesar de não ter comido e não ter dado pra ninguém até então. Esqueci de dizer que a Lu, além de bi, é feia que nem o capeta. Também depuseram a Su e a indefectível Japinha do contábil – que disse pro delegado que ia dividir a fatura por quatro e que em São Paulo a gente chama de farol. E assim lavrou-se o boletim de ocorrência: “a depoente, denominada Ki, reafirma que não tem responsabilidade alguma com relação ao ex-namorado de seu irmão, também conhecido como ‘namorado do Cu’ e/ou ‘Garupa-de-Anjo’, retifica, ex do Cu, e vítima de sequestro-relâmpago, a mesma confirma que não vai pagar resgate e que em São Paulo favela também é comunidade e semáforo é farol etc. etc.” Su idem, Lu ibidem e, por fim, o ofendido Cu declarou ao delegado: “Em São Paulo, a gente chama de farol e nunca mais quero ver aquele ingrato pela frente,e nem por trás”. Compartilhadíssimo.
No sábado de Carnaval choveu e a galera resolveu ficar em casa. Foi aí que perceberam que o ex do Cu não fazia a menor falta. Mesmo sem a presença do malaco, a quitinete continuava úmida, barulhenta e medindo os mesmos 30 m2. Saíram. Em fila indiana. Debaixo de chuva. Chegando no Belmonte, a Ki pediu um chopes e dois pastel, a Japinha do contábil – como de praxe – imitou a Ki e ato contínuo pediu um chopes e dois pastel, a Su e o Cu e a Lu sentiram falta de nuggets e também pediram um chopes e dois pastel, tiraram fotos dos chopes mijados, de suas infelicidades sorridentes e fotos dos pastéis, postaram no feice e naquele mesmo domingo, às sete horas da manhã, depois de pagarem vários micos no sambódromo, voltaram felizes da vida, primeiro pro feicibuqui de onde nunca saíram, e depois pro ABC. Ou melhor, Lu e Su foram pra Santo André, a Japinha e seu celular pra São Bernardo do Campo e a Ki pra putaqueapariu junto com o Cu e a próxima fatura do cartão de crédito.
Garupa-de-Anjo passou o Carnaval num barraco do Pavão-Pavãozinho. Não rolou pagamento de resgate, mas rolou muita sacanagem: o ex do Cu beijou com gosto de maracujá, serviu-se e foi servido pelo funkeiro até que o tesão acabou na quarta-feira de cinzas. Viado de merda, Carnaval idem. A Ki é quem estava certa: em São Paulo, a gente chama de farol e aquele arremedo de fanchona nunca foi homem pra pagar a comanda do Curiolano. Curiolanozinho Junior, e pros mais íntimos e pra galera do feice, Cu.
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Nos estertores de dezembro, bem na última semana, saiu meu primeiro livro “infantil”. Escrito a quatro mãos com Furio Lonza. As ilustrações são de André Berger. A editora é a Barcarolla. À venda aqui e no Sebo do Bactéria.
Abraços e um ótimo Carnaval a todos.
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