Márcia Denser
Quando política fica jogo duro, rola aquela aridez alagoana, então eu dou um tempo, tempo da ficção do intervalo. De forma que lá vai um fragmento do meu romance Caim, e bem a propósito, porque Saramago também acaba de lançar outro romance com este mesmo título – Caim. Ainda não li, mas segundo resenhas a respeito, ele usa Caim para atacar Deus, defende a tese de que não se pode confiar em Deus etc. Modestamente, foi mais ou menos o que eu fiz, transgressores que somos todos da tribo, farinha do mesmo saco.
No mais, Caim é um arquétipo, portanto, de domínio público.
“Será uma longa noite, Júlia bocejou mortalmente entediada, esquadrinhando as estantes, quando o porta-retratos deslocou-se empoeirado por entre os livros: a memorável fotografia de seu pai, de Álvaro posando oficialmente aos dezoito anos para a posteridade. Sim, era ele, tão essencialmente ele que nada tinha a ver com ele. Na década de 40 fazia furor entre os rapazes a clássica pose à la Gardel, cachimbo na mão, terno risca de giz, gravata branca/camisa preta dos gângsteres de Chicago, chapéu em diagonal e a inconcebível inclinação da cabeça (podia ter torcido o pescoço, velho); a expressão vacilante, indecisa, malgrado ou a negar os traços nobres. Sem dúvida, um ilustre desconhecido para si próprio.
Não percebia, não se dava conta das arqueadas sobrancelhas negras? Não. Dos verdes olhos mareados? Não. Não achava ridícula aquela pinta no canto do olho acentuada a lápis? Não. Nem contornar os lábios com batom? Não. Era assim, usava assim, diziam as tias, os tios, Vivien, ele próprio. Não. Você nunca foi viado, papai, talvez inocente demais, vaidoso demais, sensível demais, além de assíduo freqüentador de penteadeiras e do leito conjugal, na insensata esperança de que lhe retificassem a imagem, de resto, uma bela figura de homem que não teria necessitado de retificação alguma, não fosse o fato dum detalhe irrisório ser o bastante para destruí-lo: tolo demais, papai.
Porque não era nem detalhe nem irrisório: aquele beiço caído era uma espécie de marca registrada da família, o sinete do clã, por isso não imprecava contra ele, não o maldizia, apenas fingia ignorá-lo: mas por isso se fodeu, papai. Porque assim transformou-o num apêndice autônomo, indiferente ao seu comando, à sua vontade, posto que continuou a exprimir as emoções daquele que o rejeitou como parte do rosto, da alma.
O beiço caído era o legado do pai, o legado do avô e do bisavô, a imperfeição que só se reconheceria imperfeita a quem aceitasse enfrentá-la, descesse aos infernos e enfrentasse o delírio da sombra ignorada, a quem a subjugasse e triunfante retornasse do limbo, a quem aceitasse morrer duas vezes para que pudesse ser retificado e iluminado, resgatando o devido àquela força que “sempre quer o mal e só cria o bem” (Onde leu isso? Em Goethe? Mas você não lê Goethe, está citando de segunda mão…), porque este renasceria registrado no Livro do Senhor com seu próprio selo pessoal e intransferível, o sinete que imprimiria a palavra PAGO em letras de fogo, este seria o relator do próprio destino pelo qual doravante seria responsável, criador, criatura e testemunha do ocorrido, porquanto no Livro do Senhor o tempo recomeçaria a ser contado a partir da data do resgate da última letra da imperfeição.
Porque Álvaro lutou. O único da irmandade, o único entre um bando de cegos e covardes que ao menos tentou desesperadamente, lutando sem armas, abater a força irreconciliável. Porque a reconhecia, a pressentia aterradora, vertiginosa como o mar, mesmo assim lutou, obstinado, louco e foi tragado. Ela não o esmagou, não o maltratou, apenas o envolveu lenta e inexorável, o sepultou, devolvendo-o ao esquecimento.
Nele, o beiço caído parecia exprimir apenas sua repulsa, como o esgar de alguém prestes a vomitar a própria boca, expulsar a palavra, o poder do nome que legou a mim, a filha, a mim, mais velha e despojada de primogenitura, eu, o aleijão da sua sombra deformada. Da raça daqueles que renunciam ao amor.”
(Caim: Rio, Record, 2006)
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