João Capiberibe*
A minha foi determinante para encarar a vida pública. Nasci na beira de um rio, dos tantos que serpenteiam a ilha do Marajó. Ainda menino, empreendi minha primeira aventura montado em uma canoa a vela, dias depois avistei Macapá, onde viveria minha segunda infância e parte da adolescência antes de ganhar o mundo.
Nos primeiros tempos, um fascínio. A ficha caiu quando fui morar na periferia. A água era de poço e a luz, de lamparina. Eu era mais um a conviver com a diferença de classes, como se cá nos bairros pobres fossemos invisíveis.
Na outra cidade a água jorrava límpida e cristalina nas torneiras, e as casas, à noite, eram tão iluminadas que parecia dia. Esperei anos para ver esses benefícios chegarem à minha porta. Cresci ouvindo as desculpas de sempre: falta verba, o governo não tem dinheiro para atender todo mundo, é preciso paciência.
Muitos anos se passaram até que, depois de ter percorrido terras distantes, voltei a Macapá para ficar. Estava tudo igual. Meu bairro, o Igarapé das Mulheres, fora a beleza do nome, continuava precário, cheio de carências e apelos. Até as desculpas eram as mesmas. Intrigado com o mesmo refrão, decidi passar a história a limpo, candidatei-me a prefeito em 1988, prometendo simplesmente participação popular na gestão da cidade. Terminei surpreendentemente eleito.
De cara descobri que havia dinheiro, porém mal aplicado. No pagamento do primeiro mês de salários dos funcionários decidi entregar pessoalmente os contracheques. Surpresa: sobraram 440. Isso mesmo, muita gente “boa” da cidade, nomeada por decreto ‘secreto’, encolheu na hora de encarar a luz pública. Fui abrindo caminho em meio a uma intrincada teia de interesses particulares fincados em torno do orçamento. Um belo dia me deu um estalo: vamos expor na frente da prefeitura, em um quadro negro, as receitas e despesas mensais para todo mundo ver, e assim foi feito. A transparência, mesmo apresentada de forma precária, além de produzir ganhos inusitados para a cidade, foi determinante na campanha que me elegeu governador em 1994.
Com um programa legitimado pelas urnas, assumi o governo embalado pela utopia do desenvolvimento sustentável recém parido da Eco-92. Agreguei, fundamentado na gestão transparente das receitas e despesas públicas, o compromisso de eliminar o patrimonialismo e a corrupção.
Para início de conversa descobri que meu antecessor governava com os cheques em cima da mesa. Com base nos saldos financeiros ia distribuindo bondades. Além de gastar os R$ 278 milhões arrecadados em 1994, deixou espetada uma dívida de R$ 151 milhões. Naquele tempo não havia Lei de Responsabilidade Fiscal.
Foram dois anos organizando, informatizando e implantando, com apoio do SERPRO, o Sistema Integrado de Administração Orçamentário e Financeiro do Estado do Amapá, passo decisivo para o que viria em seguida. Com a senha do sistema grudei os olhos nas receitas e nas despesas mostradas no monitor do computador que desfilavam em tempo real. Assim controlava as secretarias e avaliava seus desempenhos. Auditei e suspendi processos de compras com indícios de superfaturamento afastando imediatamente os responsáveis. A intranet era perfeita. Então me veio à cabeça o quadro da transparência da prefeitura, só que eletrônico.
Reeleito, fortalecido politicamente e completamente obcecado pela transparência pedalei um tempão sem sair do lugar. Ainda não havia competência técnica do tamanho do salto pretendido. Persisti até que, no começo de 2002, foi estabelecido o link com a internet, expondo em tempo real o detalhamento das notas de empenho. Quanto às receitas, a Secretaria da Fazenda no final do dia mandava para a rede o extrato de todas as contas bancárias. O Amapá foi o primeiro estado com transparência total sem senhas ou códigos. Qualquer pessoa podia ter acesso aos preços praticados pelo governo. Um passo importante, porém frágil, pois não consegui transformar essa prática em lei, garantindo sua constitucionalidade e obrigatoriedade.
Deixei o governo em abril de 2002 para concorrer ao Senado. Eleito, negociei com os candidatos vencedores do primeiro turno para o governo estadual a continuidade do projeto. Um deles repetia à exaustão, no rádio e na televisão, que manteria as contas na internet. Recebeu nosso apoio, foi eleito e manteve sua palavra em parte, já que frequentemente observa-se uma certa demora para colocar o sistema em tempo real. Empossado apresentei o projeto Transparência, logrando aprová-lo no final de 2004. Esse ano o projeto foi ratificado na Câmara e sancionado pelo presidente Lula.
Ao longo de sete anos e três meses da revolução silenciosa da sustentabilidade e da transparência no coração da floresta, o Amapá deu um salto inusitado em sua qualidade de vida. Concluo com apenas dois dados para contrariar o coro da falta de verba.
Nós, mais que dobramos as vagas no ensino médio. Em março de 1994, foram matriculados na rede pública estadual 13.713 alunos no ensino médio, em março de 2002, esse mesmo número saltou para 30.596.
A energia elétrica, um serviço caro, foi ampliada em Macapá e Santana, além de atingir todos os municípios. A extensão da rede de energia elétrica que, em 1994, era de 1.464,95 km, em 2001 contava com 2998,02 km de extensão. Colocamos energia elétrica nas sedes de todos os municípios do interior do estado, que antes viviam às escuras.
Reafirmo com base na minha experiência que as contas públicas aos olhos do contribuinte são lucro certo para todos. Por último, basta comparar: a carga tributária dos alemães é um pouco abaixo da nossa, porque será que nossa qualidade de vida não é também um pouco mais alta que a deles?
*João Capiberibe, ex-prefeito, ex-governador e ex-senador do Amapá. Autor da Lei Complementar N° 131 de 27 de maio de 2009, a Lei Capiberibe.
Deixe um comentário