Celso Lungaretti*
Quando eu refletia sobre como posicionar-me diante do imbroglio hondurenho, o e-mail recebido do inestimável companheiro Ismar de Souza indicou-me o caminho correto:
“Mesmo sem ter presenciado, veio-me à memória como deve ter sido o golpe contra Goulart em 1964. Os países da América Latina devem reagir rapidamente, senão a espiral golpista pode voltar com força total em republiquetas menores, depois em países maiores como a Venezuela e Bolívia”.
Concordo: é mesmo um precedente perigosíssimo, daí a necessidade de abortarmos imediatamente o golpe de estado. É a prioridade nº 1, neste momento.
Quando me posicionei com tanta ênfase contra a proposta de emenda constitucional para facultar-se nova reeleição ao presidente Lula, foi exatamente por temer um desdobramento desse tipo.
O presidente em exercício tem um poder de fogo muito grande para conseguir apoios e maiorias. Se o utilizar para perpetuar-se no poder, tem grande chance de obter êxito. Daí ser inaceitável, numa democracia, que ele manobre para a convocação de constituintes ou realização de plebiscitos no sentido de que sejam alteradas as regras do jogo em seu benefício. Mudanças que entrarão em vigência no mandato seguinte, tudo bem. Mudanças em causa própria, nunca!
Pior: a rua é sempre de duas mãos. Quem apóia a presidência eterna do Chávez será um cínico se negar idêntico direito a Uribe. O que serve para a esquerda, acaba servindo também para a direita.
Esquerda x Maquiavelismo – Mas, objetarão alguns companheiros de esquerda, o que importam as regrinhas democráticas para quem quer tocar adiante uma revolução?
Aí a discussão é longa. Mas, eu permaneço fiel a um valor da minha geração: não se fazem revoluções com subterfúgios.
O PCB sempre acreditou em conquistar, pela via democrática, posições-chave do governo (quiçá a própria Presidência da República) e depois utilizá-las como catapulta para o poder.
Foi a postura que levou ao terrível fracasso de 1964. E que gerou uma nova esquerda, em 1968, disposta a perseguir abertamente seus objetivos, proclamando-os em alto e bom som, sem tentar esconder a que vinha.
Utilizarem-se as franquias democráticas para conquistar o governo e depois tentar burlá-las para alcançar o poder é puro maquiavelismo. Nada tem a ver com o marxismo, muito menos com o anarquismo.
Outro valor fundamental para a minha geração: revoluções são feitas pelo povo e com o povo. Acontecem quando o povo está pronto para elas. Não tomando-se o poder para depois tentar-se engajar o povo, pois este tem de ser sempre o sujeito da revolução, nunca o objeto.
Quem passa por cima disto, mesmo com boas intenções, acaba vendo o povo reduzido à condição de coadjuvante também durante o regime dito revolucionário. Daí o alerta profético de Trotsky: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um ditador substitui o Comitê Central.
Mais: revoluções são obra coletiva, não dependem desesperadamente de líder nenhum.
Se o preço das forçações de barra continuístas é dar ensejo a golpes de estado direitistas, então um presidente de esquerda tem mais é de tentar fazer seu sucessor, como o Lula no caso da Dilma.
Se tem mesmo prestígio junto às massas, elegerá um discípulo fiel e não concederá, de mão beijada, um trunfo à direita golpista. Se não tem, que se resigne a deixar o governo no final do mandato. É simples assim.
No fim da linha, os pinochetazzos – As trapalhadas do presidente hondurenho Manuel Zelaya permitiram que o golpe dado contra ele parecesse justificável. Afinal, pouparam-lhe a vida, boa parte de seu próprio partido o traiu, o Congresso avalizou a deposição e o substituto é um civil, o presidente do Legislativo, que promete marcar novas eleições para breve.
Eis um enorme perigo: começa-se por um golpe brando e se acaba em pinochetazzos. O ovo da serpente tem de ser esmagado antes de eclodir!
Mas, não por uma intervenção militar de um único país (como a Venezuela), o que geraria uma reação em cadeia, de consequências imprevisíveis. E sim por meio de uma articulação continental.
Mesmo porque a ninguém deve ser concedido o papel de polícia da América Latina. Se tanto combatemos a atuação dos EUA neste sentido, não foi para que as tropas de Chávez tomassem o lugar dos marines.
E que, uma vez afastado o perigo imediato, este episódio sirva como advertência. É hora de dissociarmos, de uma vez por todas, nossas revoluções de tudo que seja — ou pareça — o velho caudilhismo latino-americano.
* Jornalista e escritor, mantém os blogues
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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