Um minucioso, lúcido e irrefutável artigo de Noam Chomsky para a Al Jazeera (vinculado pela Carta Maior na última terça-feira) colocando numa perspectiva, no mínimo, realista (pra não dizer brutal) razões, motivações e fatos que conduzem a um raciocínio sobre o declínio real dos EUA nos últimos anos, merece, a meu ver, ser aqui parcialmente reproduzido: fonte tão boa e honesta o leitor mundial não terá outra, isso ele pode apostar.
Exemplo lapidar do que se está afirmando sobre a ausência absoluta de confiabilidade da mídia é um diálogo do hacker Justin Long com Bruce Willis no filme Duro de Matar 4.0 (2007): quando BW liga o rádio, sintonizando as notícias para saber o que está acontecendo,o jovem lhe ri na cara e dispara: “Você ainda acredita no que diz a mídia coorporativa, vovô?(e isto implica toda a mídia do planeta). Há muito, nós, jovens, não a ouvimos. Ela só presta pra duas coisas: infundir medo na população e nos fazer consumir cada vez mais besteiras que não precisamos!”.
Síntese admirável, não?
Voltando a Chomsky. Este afirma que, há algum tempo, os Estados Unidos entraram numa nova fase: a do declínio auto-infligido. Desde os anos 70, ocorrem mudanças significativas na economia dos EUA à medida que estrategistas – estatais e do setor privado – passaram a conduzi-la para a financeirização e à exportação de plantas industriais. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza e o poder político se tornaram altamente concentrados, os salários dos trabalhadores se estagnaram e a carga de trabalho aumentou, bem como o endividamento das famílias.
No item “Perdendo a China e o Vietnã”, ele observa que, olhando de perto o declínio americano, a China joga um grande papel nele, como já o fazia há 60 anos, uma vez que o declínio não é um fenômeno recente. Ele remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA possuíam a metade da riqueza do mundo, dispondo de níveis globais de segurança incomparáveis. E os estrategistas políticos estavam conscientes dessa enorme disparidade de poder e pretendiam mantê-la assim.
Citando George Kennan, “um pacifista moderado”, este observa que o objetivo político central era manter a “posição de disparidade” que separava a nossa enorme riqueza da pobreza dos outros. E para alcançar esse objetivo “nós deveríamos parar de falar de objetivos irreais, como direitos humanos, elevação do padrão de vida e a democratização”, e “lidar com conceitos estritos de poder, não limitados por slogans idealistas como altruísmo e o benefício do mundo”. (grifos meus). Kennan estava se referindo especificamente à Ásia, mas as observações dele se generalizaram, com exceções, aos participantes do atual sistema de dominação global dos EUA. Ficou bastante claro que os “slogans idealistas” deveriam ser apresentados sobretudo quando dirigidos aos outros, inclusive às classes intelectualizadas, das quais se esperava que os disseminassem. (novamente grifo meu)
Chomsky: “O plano de Kennan ajudou a formular e a implementar a tomada de controle dos EUA do Hemisfério Oeste, do Extremo Leste e das regiões do ex-império britânico (incluindo os recursos energéticos do Oriente Médio), e o quanto foi possível da Eurásia, sobretudo seus centros comerciais e industriais. Esses não eram objetivos irreais, dada a distribuição do poder. Mas o declínio foi então definido de vez. Em 1949, a China declarou independência, um evento conhecido no discurso americano como “a perda da China”. A terminologia é reveladora. Só é possível perder o que, em algum momento, se teve. A aceitação implícita, geral, era que os EUA tinham a China por direito, juntamente com a maior parte do resto do mundo.”
Para Chomsky, a “perda da China” foi o primeiro grande passo do “declínio americano”. Foi o que teve grandes consequências políticas. Uma delas foi a decisão imediata de apoiar o esforço francês de reconquista da sua ex-colônia da Indochina, para que esta também não fosse “perdida”. A Indochina em si não era a preocupação maior, a despeito das afirmações de suas riquezas naturais por parte do presidente Eisenhower e outros. A preocupação maior era antes com a “teoria do efeito dominó” (frequentemente ridicularizada – enquanto os dominós não caem), mas permanece um princípio regulador da política, porque é bastante racional. Para adotar a versão Henri Kissinger dele, uma localidade que cai fora do controle, pode se tornar um “vírus” que irá “contagiar”, isto é, induzir outros a seguir o mesmo caminho.
No caso do Vietnã, a preocupação era que esse vírus do “desenvolvimento independente” pudesse infectar a Indonésia, rica em recursos. E isso podia levar o Japão – o “superdominó” – a “acomodar” uma Ásia independente como seu centro tecnológico e industrial num sistema que escaparia do alcance do poder dos EUA. Isso significaria, com efeito, que o EUA haviam perdido a fase “Pacífico da Segunda Guerra”, a qual tentou impedir que o Japão estabelecesse uma Nova Ordem na Ásia.
O modo de lidar com o problema é claro: destruir o vírus e “inocular” aqueles que podem ser infectados. No caso do Vietnã, a escolha racional era destruir qualquer esperança de desenvolvimento independente bem sucedido e impor ditaduras brutais no entorno. Essas tarefas foram levadas a cabo com sucesso – embora a história tenha sua própria astúcia, e algo similar ao que era temido desde então se desenvolveu no Leste da Ásia. Para consternação de Washington.
Anos após os grandes eventos de 1965, o conselheiro para Assuntos de Segurança Nacional de Kennedy e Johnson, McGeorge Bundy, refletiria que teria sido sensato acabar com a guerra do Vietnã a tempo, destruindo-se o “vírus” virtualmente e, o principal, mantendo-se o
“dominó” solidamente em seu lugar, no esteio de outras ditaduras apoiadas pelos EUA. Procedimentos similares eram rotineiramente seguidos em outros lugares.
Kissinger concentrou-se especialmente na ameaça da democracia socialista no Chile. Tal ameaça acabou em outra data esquecida, que os latino-americanos chamam de “O Primeiro 11 de Setembro” que, em violência e efeitos nefastos, excedeu em muito o outro 11 de Setembro – no caso, a ditadura do General Pinochet, como parte da praga de repressão brutal que se espalhou pela América Latina e América Central nos anos Reagan (a propósito, ver também Naomi Klein no livro “A doutrina do choque”, 2006).
Esse vírus tem gerado preocupações profundas aqui e ali, inclusive no Oriente Médio, onde a ameaça de um nacionalismo secular tem consternado os estrategistas britânicos e estadunidenses, induzindo-os a apoiar o fundamentalismo islâmico para opor-se a ele.
Mesmo com tais vitórias, o declínio americano continuou. Por volta de 1970, a parte da riqueza do mundo dos EUA saltou para 25%, basicamente onde está hoje, concentração ainda colossal, mas bastante inferior àquela de fins da Segunda Guerra. Nessa época, o mundo industrial era “tripolar”: a base norte americana, a europeia, da Alemanha, e a do Leste da Ásia, já a região industrial mais dinâmica, naquele tempo com base no Japão, mas hoje incluindo as ex-colônias japonesas de Taiwan e o Sul da Coréia, e mais recentemente a China.
Foi nesse período que o declínio americano tornou-se auto-infligido, à medida que os estrategistas econômicos passaram a conduzi-lo para a financeirização e exportação de plantas industriais, levadas a cabo em parte pelo declínio da taxa de lucro na indústria doméstica. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza se tornou altamente concentrada (dramaticamente nos 0,1% da população), levando à concentração de poder político, e então à desregulação e às mudanças nas regras da administração corporativa – o que permitiu imensos ganhos para os executivos – e por aí vai.
Enquanto isso, para a maioria, os salários reais foram majoritariamente estagnados e ao povo só restou aumentar a carga de trabalho (muito além da europeia), a dívida insustentável e as repetidas bolhas, desde os anos Reagan; criando riquezas de papel que desapareciam inevitavelmente quando a bolha estourava (e seus perpetradores eram resgatados pelos contribuintes). Paralelamente, o sistema político foi se fragmentando, enquanto ambos os partidos mergulhavam cada vez mais nos bolsos das corporações com a escalada do custo das eleições. Os republicanos ao nível do absurdo e os democratas – agora “ex-republicanos moderados” – não ficando muito atrás.
E Chomsky conclui: “Um estudo recente do Instituto de Política Econômica, que tem sido a maior fonte de dados respeitáveis sobre o desenvolvimento, é chamada Failure by Design (Fracasso por Ecomenda]. A frase “by design” é acurada. Outras escolhas eram certamente possíveis. E como mostra o estudo, o “fracasso” tem um corte de classe. Não há fracasso para os “designers”. Longe disso. As políticas fracassaram para a imensa maioria, os 99%, na imagem dos movimentos Occupy, e para o país, que tem declinado e continuará a fazê-lo sob essas políticas.”
Pois é, pelo “re-design” dos atuais estrategistas, “perda” e “fracasso” são conceitos que se “relativizam”: se foi para 99% da população norte-americana e mundial, azar. Mas, inexoravelmente, prossegue o declínio” do Império do 1%, prova irrefutável que a realidade não se deixa “relativizar” de modo algum: o que sobe tem que cair. Inevitavelmente. E o vírus da concentração de riqueza nas mãos de 1% inevitavelmente é letal. Para “eles”, naturalmente.
Porque nós já “morremos”.
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