Marcelo Mirisola*
Fui dormir tranqüilo e feliz da vida porque, finalmente, Sérgio Reis teve uma noite de amor com sua cabrita no Pantanal. Gosto do Serjão, e torço por ele.
Tudo certo, até as três horas da manhã. Aí acordei com o barulho da janela vibrando. No começo pensei que eram as obras do metrô. Bate-estaca. Metrô às três da manhã? Não, de jeito nenhum. Talvez o Bope estreando o novo Caveirão na Pavão-Pavãozinho… ou seria o buraco negro provocado pelo acelerador de partículas LHC?
As janelas tremiam. Abri as cortinas, e me atrevi a dar uma olhada. Vi uma sujeita com uma cobra dependurada no pescoço entrar no prédio da frente. O bate-estaca vinha de lá. Não era demolição, nem ataque da Al Qaeda, tampouco os meninos do Bope. Fiz uma coisa que nunca havia feito na vida. Liguei pro 190. E disse:
– Sou trabalhador, acordo cedo e agora são três horas da manhã.
– Por favor, tenha calma – do outro lado da linha, sgto. Bonilha.
– Quero registrar uma queixa. O senhor está ouvindo esse barulho? Vocês têm convênio com o Ibama?
Sargento Bonilha foi muito educado e prometeu que mandaria uma viatura para o local. Para reforçar a queixa – sei que não fui nada original, mas ia ficar faltando alguma coisa –, disse que havia gente doente em casa; e lembrei ao sgto. Bonilha que, na minha cidade, um barulho desses, às três horas da manhã, era motivo de sei lá… pena de morte, reeleição do prefeito, processo por danos morais ou algo que o valha. Para arrematar, disse: minha queixa não é contra a festa, não, estou reclamando do barulho. Ouve isso, sargento.
Enquanto um solidário sgto. Bonilha ouvia o bate-estaca, pensei comigo mesmo: até as Andanças, da Beth Carvalho, eu agüentaria.
Isso que me emputeceu. Nenhum gritinho de secretária, nenhum Kojac metendo bronca nos bandidos nem sumindo com os pirulitos do mercado, a noite ia ser um inferno e nada ia rolar na vitrola, nem sombra de B.B. King.
Não, o problema não era comigo. Cheguei a pensar “olha eu aqui ligando pro 190 pra reclamar do barulho” que estava ficando velho. Mas era barulho mesmo, não era festa. A gostosa da Solange não havia dado uma escapadinha com o Fagundes, não havia garçom de gravata borboleta. Nem uísque vagabundo. Ninguém ia tirar ninguém pra dançar. No final da festa não ia tocar Do You Wanna Dance. Nenhum beijo roubado. O que reverberava nos meus tímpanos era a morte sem dramas. Nem carpideiras, nem viúvas. Debaixo do bate-estaca não se ouvia o tilintar de copos, nada que lembrasse os vestígios de uma festa. Nenhuma mulher peituda se debruçaria na janela com um copo de Dry Martini na mão. Impossível cogitar num Edward Hopper. Nada podia acontecer diferente da afirmação violenta do silêncio. Aquilo era o Pilão onde o diabo amassava a humanidade e a inteligência das pessoas.
Uhhuuuu – era o que se ouvia nos intervalos do bate-estaca: essa merda de grito gutural que remete a Big Brother e falta de talento. A culpa é do Pedro Bial, pensei. Quem grita uhhhhuuuuu e vibra com esse maldito bate-estaca só pode ter o esfíncter no lugar do coração.
Deixei isso muito bem claro para o sgto.Bonilha – que anotava minha queixa do outro lado da linha: “o esfíncter, sargento, no lugar do coração”. E o pior é que esses animais almoçam no mesmo quilo que eu, eles elegem prefeitos e vereadores… e alguns são vegetarianos e participam de reuniões de condomínio. Ah, meu Deus.
Quando penso nisso (eis o problema, eu penso, penso) me dá uma preguiça danada de olhar para os dois lados antes de atravessar as ruas, eu penso sinceramente em saltar de banda e entregar os pontos. Onde vim amarrar meu jegue? O que eu estou fazendo aqui neste lugar onde as pizzas têm bordas recheadas de catupiry? Que lugar é esse onde gordas de franjinha enchem as panturilhas de tatuagens, todo mundo é artista, os jogadores de futebol são evangélicos… e senhores circunspectos reafirmam sua civilidade e boa educação limpando merda de poodles pelas ruas?
Só não “antecipo o serviço” porque sou candidato às profundezas – confesso – e se não fosse a preocupação em chegar nos quintos e ter de encarar um bate-estaca, já teria virado cobertura de asfalto há muito tempo.
Era só o que me faltava: chegar nas caldeiras e ter de ouvir esse bate-estaca-uhhuuuuuuu por toda a eternidade. Ou alguém ainda tem alguma dúvida sobre a trilha sonora do inferno?
O que estaria acontecendo comigo? Nunca imaginei que um dia sentiria nostalgia das Andanças da Beth Carvalho. Eu sempre tive urticárias com essa música. Só faltava abrir os braços sobre Copacabana, e sentir falta do Belchior. Eu achei que havia atingido o fundo do poço. Mas era só o começo. Na crise de minha descabelada nostalgia Por onde for /quero ser seu par… aconteceu de Bonilha, o sargento, repetir do outro lado da linha: “também quero”. Eu não devia estar ouvindo aquilo. Não era possível que até o sgto. Bonilha estivesse comprometido com o rés-do-chão.
Aí lembrei de Machado de Assis, e entendi que tudo é possível: depois que o Raul Gil homenageou o xarope do Ed Motta – no mesmo altar – que Moacyr Franco e Aguinaldo Rayol foram homenageados, depois dessa decepção, nada era impossível. Até a declaração de amor do sgto. Bonilha estava dentro dos limites da inverossimilhança e da incredulidade, nada demais.
Desliguei o telefone, e olhei para um carro amarelo estacionado na calçada do prédio vizinho. Fazia tempo que não via um carro amarelo. Hoje os carros são cinzas, pretos e no máximo prateados. Bonito carro. Acendi um cigarro metafísico – porque eu não fumo – e desejei que o bate-estaca virasse apenas uma festa no outro apartamento.
Uma canção da Marina Lima. Um auto-engano. Fazer o quê? Eu não tinha outra opção. Na falta de Johnny Rivers e da viatura prometida pelo sgto. Bonilha que não apareceu, resolvi que a segunda chupa-grelo mais talentosa da MPB me quebraria o galho até o dia amanhecer. Pedir o socorro da Ângela Rô Rô também já seria demais.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.
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