O livro Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, de Márcia Tiburi (Editora Record), mal acabou de sair (começo de novembro) e já está em segunda edição!
Realmente, a questão do renascimento do autoritarismo e das relações hostis no cotidiano de todo o mundo nunca estiveram tão presentes. E urgentes. Políticos do PT – até mesmo Eduardo Suplicy, na Livraria Cultura! – são sistematicamente agredidos, alvo de violência verbal e física por parte de grupos fascistóides à solta nas ruas. Nunca um ganhador do Prêmio Congresso em Foco de melhor deputado esteve tão em evidência quanto Jean Wyllys, homossexual de esquerda, até porque as facções progressistas, humanistas e de esquerda também despertaram e estão mais atuantes do que nunca. Tanto que o impeachment de Dilma Rousseff se tornou um alvo cada vez mais distante dos desejos duma oposição cega, raivosa e sob intensa investigação e observação internacional, incluindo-se a mídia hegemônica (Veja, Globo, Estadão, Folha), Aécio Neves, o candidato derrotado e presidente do PSDB, FHC, sem contar toda a turma do PMDB, Eduardo Cunha à frente. E tome movimentos populares, passeatas, manifestações, ocupações e locautes em curso em todo o Brasil.
O âmbito dos fatos excede infinitamente este artigo, que apenas pretende assinalar o ressurgimento do pensamento autoritário e do comportamento fascista no Brasil, com o timbre fanático-evangelista das igrejas marginais, representados pela popularidade de elementos como Jair Bolsonaro, Datena, Russomano, Danilo Gentili, Eduardo
Cunha, Marco Feliciano e horrores menos votados, e a abordagem pragmático-filosófica de Marcia Tiburi.
Para quem, se o ódio irrompe no seio da sociedade civilizada em seu estágio tecnológico-digital, é porque de algum modo o ódio é parte dela. Glosando o pensamento da autora, amor e ódio são afetos presentes desde sempre no homem.
Se pensarmos nos discursos de incitação à violência, uma das formas expressivas do ódio, veremos que esta é transmitida de cima para baixo, como numa engrenagem acionada de fora: líderes políticos, publicitários, jornalísticos e todos os que detêm o discurso podem ligar a máquina incitadora do ódio, onde cada um se torna um dente dessa grande engrenagem de produzir fascistas.
Na origem de todo ódio está a fofoca, o assédio moral, a maledicência em geral. O modo como se produz o medo também produz o ódio, são afetos associados. A sociedade que promove a insegurança – e a comercializa por todos os lados – depende do sucesso do medo. Medo da economia, da política e, em última instância, medo do outro.
Para Tiburi, precisaríamos pensar mais, porque o fato é que vivemos no vazio do pensamento, na famosa expressão de Hannah Arendt, ao qual se acrescenta o vazio da ação e o vazio do sentimento. O vazio é o estranho ethos de nossa época. Mas o conhecimento não pode ser concebido fora de seu registro ético-político. Se o conhecimento funcionar pela negação do outro, como no fascismo, ele se torna negação de si mesmo. E sem o outro, o conhecimento morre.
Daí a impressão que temos de que uma personalidade autoritária é também burra, pois ela não consegue entender o outro e nada que esteja em seu circuito. O campo do outro lhe é inacessível porque ela não tem condições cognitivas para alcançá-lo, sem contar que lhe faltam afetividade e imaginação.
MT diz: “O fascista é o suprassumo da personalidade autoritária, aquele que julga o outro pela utilidade, pela lógica da medida. O fascista é o sacerdote do capitalismo cuja liturgia implica este julgamento, ao modo de um batismo perverso. O outro é descartado e lançado à matabilidade”.
De forma que, em que direção devemos agir diante desse estado de coisas? A autora propõe um experimentum crucis teórico-prático: como conversar com um fascista, para além do discurso de denúncia ou de queixa, que são formas primitivas de crítica.
A crer em Adorno, que desconstruiu o fascismo, “a vítima desperta o desejo de proscrever” (ou expulsar, banir). Pois a religião do capitalismo (fascismo) implica culpar previamente o outro como “imprestável” ou “descartável”. E tanto imprestáveis como descartáveis devem perecer. Se existem, são culpados, e se são culpados, estão condenados.
Assumir a posição de vítima, que se confunde com a posição de culpado em nossa sociedade capitalista, corresponde a expor-se, abrir o flanco ao massacre.
Daí que a autora propõe sempre o diálogo, mas em termos: até porque o diálogo é totalmente indesejado nos sistemas autoritários. O diálogo é o contrário do discurso e só ele pode desarmá-lo.
Somente ele pode desmontar o “dispositivo sem tornar-se um novo dispositivo”. Para Foucault, o poder funciona por meio de dispositivos – armadilhas que nos enredam sem escapatória, como o sexo, por exemplo. Outro exemplo: o discurso dos meios de comunicação é construído para evitar o diálogo, pois este leva ao pensamento analítico-crítico, além de ser construtor de laços cognitivo-afetivos.
Assim, o diálogo é uma espécie de “metodologia democrática” básica que poderia operar em situações privadas e públicas; ele parece frágil e impotente diante do ódio, mas ele é em si mesmo um desafio micropolítico cuja execução pode nos ajudar a pensar no que fazer em escala macropolítica, assevera nossa autora.
Enfim, este pequeno livro está mais para manual de pequenos socorros filosóficos, uma vez que dá ao leitor instrumentos dialógicos extremamente úteis para identificar e combater inimigo tão avesso e hostil a qualquer diálogo e à razão. A propósito: o livro tem prefácio de Jean Wyllys, naturalmente.
Artigo publicado originalmente na edição 20 da Revista Congresso em Foco.
A crise explicada por intelectuais de várias correntes. Os prejuízos causados ao país pelo excesso de leis e de burocracia. Como a lentidão do STF contribui para a impunidade de políticos. A polêmica sobre a escola sem partido. As dicas culturais de Sérgio de Sá e muito mais estão na edição número 20 da Revista Congresso em Foco.
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