Antônio Carlos de Medeiros*
O Brasil caminha para uma crise de Estado. Há uma grave ausência de lideranças políticas com esta visão de crise de Estado. Há uma grave ausência de Agenda para o país. Há uma grande crise de expectativas e de confiança. Mas não se vê no espectro político iniciativas politicamente responsáveis de recompor diálogos para a reconstrução e para a restauração do Estado. Muito pelo contrário. O clima é de confronto e conflagração. De autocomiseração, autoengano, açoites políticos e completa ausência de visão estratégica e de país. Reina o varejo e a improvisação. Completa catatonia.
Ainda não há um quadro político cabal de ingovernabilidade no país. Mas já existe esta probabilidade. O país não vive apenas uma crise de governabilidade. O Brasil caminha realmente para uma crise de Estado, o que é muito mais grave. Os sintomas e ingredientes já estão à vista. O lócus da crise não é só o poder Executivo, com alto déficit de entregas e grave ausência de protagonismo e centralidade política. Ela se espalha pelo poder Legislativo, com um frenesi legislativo que até cria despesas sem indicar a fonte de recursos e que se guia pelo varejo, pelos holofotes e pela política como espetáculo. E atinge o poder Judiciário, que parece imprensado entre a judicialização da política e a politização do judiciário, enquanto também defende pautas corporativas de reajustes salariais sem mostrar as fontes de recursos e sem mostrar sintonia com os limites prudenciais e a com crise fiscal.
Uma crise de autoridade está a caminho. Com o conteúdo de uma crise de hegemonia. Sim, crise de hegemonia, no sentido clássico, “a la” Gramsci. Já os resultados das eleições presidenciais de 2014 apontavam sinais de possibilidade para a emergência dessa crise de hegemonia: alta alienação eleitoral combinada com uma vitória eleitoral que não se configurou como uma vitória política cabal. Ali já estava o germe da crise.
Que se foi agravando. A ponto de todas as lideranças políticas, absolutamente todas, perderem capital político, capital simbólico e capital social. E a ponto dos partidos políticos perderem mais ainda capacidade de representação e legitimidade. E, aí, a própria Política perde a sua essência, isto é, perde a sua função primordial de articulação e agregação de interesses. Naus à deriva. E o piloto sumiu. Foi-se a centralidade da instituição Presidência da República, mas não se configurou a hipótese de um parlamentarismo branco à outrance ocupar o espaço na arena política. Veem daí vestígios de anomia social, um sentimento de “estar à deriva”. Daí para a proliferação da simbologia dos (legítimos) panelaços é apenas um pulo.
Não basta, portanto, um ajuste fiscal, ainda mais o ajuste fiscal remendado e limitado que está sendo produzido. O ministro Joaquim Levy demorou a ter respaldo político e é agora a imagem e semelhança da andorinha só que não faz verão – a expressão aristotélica que virou ditado popular e que cabe como luva neste momento. A “solução Levy”, retalhada no Congresso, é muito limitada. Deixou de ser condição necessária e nunca foi condição suficiente. Pelo andar da carruagem, tende a ser nem necessária, nem suficiente. O que torna o quadro ainda mais turbulento e incerto.
Conjugadas com o (limitado) ajuste fiscal, algumas medidas e programas estão sendo geradas e lançados. Para demonstrar esforço de conjugar ajuste fiscal e medidas voltadas para o crescimento. Mas é preciso ter presente que não é hora de panaceias. Assim como não é suficiente, embora necessária e importante, a entrega da coordenação política de curto prazo para o vice-presidente Michel Temer. A competência política de Michel Temer ajudou a distender um pouco o processo político no curto prazo, mas só um pouco. Ainda é preciso muito mais. É preciso uma inflexão.
É preciso repactuar e rearranjar a coalizão politicamente dominante no Brasil. Este é o nó górdio do atual momento histórico brasileiro. A crise não é só de governo. É de poder. Com descortínio, a Arko Advice já sublinhou que “o eixo da governabilidade – que é a relação Lula-PT-Dilma-PMDB – está comprometido e a recuperação econômica parece distante. Apenas uma combinação virtuosa de entendimento político e de sucesso econômico promoveria uma virada de forma inequívoca” (Arko Advice, “Cenários Políticos” , nº 196 , Junho/2015, Brasília-DF). Esta combinação virtuosa precisa ser articulada por diálogos virtuosos entre as forças políticas relevantes, com visão de crise de Estado. A crise atual não é um mero acidente de percurso. Tem ainda potencial para piorar e ficar mais complicada. O desemprego vai subir. As demissões vão continuar. O PIB deverá ter queda entre 1,5% e 2% neste ano e na melhor das hipóteses um crescimento nulo em 2016. Portanto, não adianta ir de remendo em remendo e na base do curto prazismo. O pior ainda está por vir.
A confluência da crise econômica com a crise política já está estimulando um outro ingrediente de crise social, seja pela falência já patente na entrega dos serviços públicos, seja pelo esgarçamento social e pela anomia social e seja, ainda, pelo aumento do “déficit de capital social” (isto é, a baixa propensão dos agentes econômicos e sociais à cooperação, o que exacerba ainda mais a crise de confiança ). No cenário, já colocado, de deslegitimação do governo, do Congresso e do sistema político, a iminência destas três crises – econômica, política e social – requer preventivos à ruptura político-institucional.
Isto mesmo: ruptura político-institucional. Ela já está no horizonte. E os líderes e os partidos mais relevantes precisam ser capazes de oferecer bússola de reconstrução política e econômica. Precisam ser capazes de sentar e dialogar. Precisam ser capazes de ter habilidade e discernimento para articular uma Agenda de saídas. O preventivo à ruptura é a ideia-força da restauração do Estado brasileiro e a articulação política da via do consenso em torno de uma Agenda mínima para o país.
Em 2014, o país votou pela não ruptura. O Brasil não tem história e cultura de rupturas. Prevaleceu, também em 2014, o caminho da experiência de mudança por acumulação, e não por ruptura. Mas a paralisia decisória no centro do Poder Político acelerou o tempo político e exacerbou os conflitos políticos e sociais. Em apenas oito meses, desde novembro de 2014, o tempo histórico parece ter caminhado quatro anos. Pois bem. O tempo histórico deslegitimou o novo governo e acelerou o ciclo político.
Agora, o quadro de crise de legitimidade do sistema político e de iminência de crise de hegemonia está a exigir, pelo caráter de inflexão histórica, a refundação do Contrato Social pela via do diálogo e da produção do consenso em torno de uma Agenda mínimo. É preciso que as lideranças políticas dialoguem no sentido de criar condições para que a presidente da República conquiste o mínimo de capacidade convocatória que leve à tecitura e arquitetura política de uma aglutinação de forças e lideranças políticas na direção da rearticulação da governabilidade e do rearranjo da coalizão politicamente dominante. Tal aglutinação precisa começar com a articulação de diálogos entre as três principais forças políticas do país: o PT, o PSDB e o PMDB.
A ideia-força é a restauração do Estado e a revitalização da democracia. Uma agenda mínima consensual em torno disto. É urgente que se abaixem as armas por um instante histórico, deixando de lado por um tempo as mesquinharias, os oportunismos, a autopreservação e a desvairada sandice da antecipação da sucessão presidencial. Sem revanchismo e com responsabilidades políticas que não dissolvam na síntese o necessário contraditório do jogo democrático, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Michel Temer, Renan Calheiros e Eduardo Cunha precisam tecer condições para a construção da Agenda. Criando condições políticas para que a presidente Dilma adquira capacidade convocatória.
A aceleração do tempo histórico está atropelando o tempo político. O ciclo político se exauriu e é preciso evitar, politicamente, tanto a iminência da recorrência do vácuo no Centro do Poder, quanto a iminência de uma situação de tutela política, que mantém o país numa situação de instabilidade e ingovernabilidade cada vez mais patente.
Uma Agenda pactuada é a porta da saída. Na direção da restauração. Trinta anos depois da “Nova República”, outra restauração é necessária. É ilusão e ilusionismo pensar que é a via do confronto e da tensão política permanente, mantendo o país sem Centro de Poder, que pode levar a uma solução. Esta via, pelo contrário, vai manter a Política alheia à crise e ao povo. Desconectada da sociedade e a caminho do “quanto pior, melhor”. É um tiro no pé de todos. Pois pode levar a crise para depois de 2018…
Nos últimos vinte anos, o Brasil produziu primeiro a agenda virtuosa da estabilidade, com Fernando Henrique Cardoso. Depois, produziu a agenda virtuosa da inclusão social, com Lula. Agora, estaria na hora de produzir a agenda da sustentabilidade. Sustentabilidade no sentido da entrega dos serviços públicos de qualidade e sustentabilidade no sentido do desenvolvimento econômico. Por que não? É preciso sair das encruzilhadas.
* PhD em Ciência Política pela London School of Economics and Political Science.
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