Paulo Kramer (*)
"Os que hablan são contra nós".
(Barão de Rio Branco)
Tarde de terça-feira, dia 2 de maio, no Senado. A nacionalização do gás e do petróleo bolivianos no dia anterior desencadeia um vendaval de discursos irados da oposição e um rosário de aflitos sorrisinhos amarelos dos governistas.
Desço apressado a escada em caracol que liga a lanchonete e a barbearia ao piso superior, onde ficam os gabinetes da presidência da Casa, das lideranças do PMDB e do PSDB e o cafezinho do plenário. Não quero chegar atrasado à entrevista com o repórter do Jornal Nacional que me ligou minutos antes.
No meio da escada, um colunista amigo trava meu braço e pergunta à queima-roupa, com aquela cara de quem não acredita no que ele próprio está dizendo:
– Mas, Paulo, do que o Arthur Virgílio e companhia estão se queixando? Não foi o FHC que inventou esse negócio de integração sul-americana? Não leram as memórias dele?
De olho no relógio, respondo bufando:
– Alto lá! A Petrobras, agora, está no mesmo barco (furado) das suas 20 congêneres estrangeiras instaladas na Bolívia, mas com uma diferença crucial: não vi o presidente de nenhum dos países de origem dessas empresas se extasiar em público com a perspectiva de vitória do então candidato presidencial Evo Morales, enquanto este prometia no palanque que faria exatamente aquilo que acaba de fazer. Só o Lula…
No táxi, já estou arrependido do tom veemente e irritado da minha resposta. Porém, agradeço mentalmente ao meu interlocutor a involuntária sugestão do argumento para a entrevista e também para este artigo.
A ambigüidade é a categoria central de análise que permite compreender os fiascos do governo, aqui e lá fora.
Da mesma forma que Lula enverga o bonezinho do MST para mandar um recado aos seus companheiros de partido ("Olha aqui, galera do fogo amigo, estamos sendo obrigados a seguir a cartilha do fernando-malanismo na política econômica, mas, no fundo, continuamos inimigos dos grandes proprietários etc"), sua política externa é muito menos um instrumento a serviço do interesse nacional do que um mecanismo de compensação psicopatológica para o fato de a maturidade alcançada pela economia brasileira, pela sociedade, pela opinião pública e pela inserção do país no mercado internacional impedir o governo de chutar o pau da barraca, retrocedendo à tamanqueira populista dos compañeros Hugo Chávez e Néstor Kirchner, sem falar naqueles tiranetes africanos há mais de 20 anos no poder e, claro, en el comandante supremo Fidel Castro.
Na verdade, Lula e sua gente não apenas se sentem intimamente desconfortáveis com as análises que situam o Brasil entre as forças "progressistas" racionais e moderadas do continente, ao lado do Chile de Michelle Bachelet e do Uruguai de Tabaré Vasquez, como também não merecem essa classificação. Imaginem só! Logo o Chile e o Uruguai que traíram o campo lulo-bolivariano buscando acordos bilaterais de livre-comércio com os Estados Unidos, caminho, aliás, seguido pelo Peru, pelo Equador e pela Colômbia, o que a um tempo, esvazia o Mercosul e torpedeia o projeto da integração sul-americana.
O episódio uruguaio é ilustrativo dessas hesitações. Desde a maxidesvalorização do real em janeiro de 1999 e o mergulho da Argentina na crise de 2000, nosso vizinho já perdera grande parte de suas receitas de exportação. A gota d’água, no entanto, veio com o conflito em razão de projeto de instalação de duas plantas de celulose às margens do rio Prata, na fronteira com a Argentina. Protestos ambientalistas abertamente fomentados pelo governo Kirchner culminavam em bloqueios rodoviários e prejuízos comerciais. Em busca de apoio para a solução do impasse, o Uruguai se voltou para o Brasil, que, porém, preferiu não se comprometer com nenhum dos lados. "A liderança é o contrário do consenso", na frase da baronesa Thatcher. Como o governo pode ainda acreditar em protagonismo internacional do Brasil quando se abstém de assumir uma posição e defendê-la com nitidez justamente no espaço de integração que proclama prioritário, o Mercosul?
É preciso reacomodar o governo Lula em uma terceira e nova categoria: a do país que, forçado ao pragmatismo involuntário, se contorce em piscadelas cúmplices para o terceiro-mundismo.
Claro que toda essa ambigüidade compromete a eficácia e a credibilidade da resposta brasileira sempre que o interesse nacional é atacado, como agora, com a ocupação militar das plantas da Petrobras na Bolívia. O panorama é sempre o mesmo, qualquer que seja o ângulo pelo qual se analise o grandiloqüente desígnio de liderança internacional brasileira proclamado pelo presidente da República e projetado pelo seu assessor de relações internacionais, o historiador da Unicamp Marco Aurélio Garcia, em dobradinha intelectual com o secretário-geral do Ministério da Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, sob o olhar de estudada condescendência do chanceler Celso Amorim.
Um pequeno exemplo: recentemente, caíram-me nas mãos alguns termos de referência do Projeto Brasil 3 tempos, sob a hoje encolhida responsabilidade do ex-ministro Luiz Gushiken. A finalidade desses documentos é orientar a elaboração de cenários de médio e longo prazos (2015 e 2022, ano do bicentenário da Independência). O documento referente aos emergentes BRICs – sigla para Brasil, Rússia, Índia e China difundida por estudo do megabanco de investimentos americano Goldman Sachs (Dreaming with BRICs: the path to 2050, de Dominic Wilson e Roopa Purushothaman, número 99 da série Global Economics Paper da GS, facilmente encontrado na internet) – parte do improvável pressuposto de que os quatro países desejam, com aproximadamente a mesma ansiedade, "integrar um novo pólo de poder mundial", alternativa terceiro-mundista à hegemonia dos capitalismos norte-americano, europeu e japonês, capaz de alterar radicalmente a arquitetura da economia mundial. Nem passa pela cabecinha dos responsáveis pelo Brasil 3 Tempos que o interesse estratégico dos dirigentes russos, indianos e chineses é o de se inserir vantajosamente na ordem mundial como ela é, e não "brincar de casinha" com os brasileiros.
Afinal, o que o Brasil ganhou da companheirada subdesenvolvida e da China, por nós generosamente brindada perante a OMC com o reconhecimento de seu (problemático) status de "economia de mercado"? Nada. Na verdade, o país só tem acumulado fracassos nas pretensões itamaratianas de conquistar as presidências da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Taiwan paga o pato (mas quem perde somos nós)
Orgulhosamente ciumentos de seu poder de veto e determinados a não dilui-lo, sob pena de enfraquecimento de prestígio internacional, russos e chineses devem se divertir bastante com a insistência do Brasil em virar membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
A China, hoje, é um dos principais alvos dos devaneios diplomáticos petistas. Exportador de bens agrícolas e produtos industriais de valor agregado geralmente baixo ou mediano e detentor de uma renda per capita de cerca de US$ 3 mil, o Brasil deveria se preocupar mais com a concorrência do gigante asiático, que produz manufaturados em volumes muitíssimo maiores e a preços infinitamente mais baixos graças à mão-de-obra abundantíssima e com renda três vezes menor que a brasileira. A fim de evitar ser torrados pelo bafo do dragão e, ao mesmo tempo, escalar a hierarquia da agregação de valor, as empresas brasileiras muito se beneficiariam do acesso ao know-how tecnológico de altíssima qualidade de países dinâmicos e com reservas em moeda forte de sobra para investimentos no exterior, como Taiwan, com plena capacidade de multiplicar em várias vezes os cerca de 5 mil empregos hoje gerados por seis de suas empresas hoje operantes no Brasil fabricando telefones celulares, monitores, informática, placas e carregadores de baterias.
Mas qual!… A ordem na chancelaria em Brasília é fazer tudo para bajular e nada para aborrecer os mandarins do capitalismo burocrático-autoritário chinês, na ilusão de atrair Beijing para a grande utopia da cooperação Sul-Sul, mesmo quando isso afronta o interesse brasileiro e se traduz em gestos de embaraçosa mesquinharia. Se não, vejamos: desde a posse de Lula, a delegação do Itamaraty à Organização Mundial de Saúde, em Genebra, vota sistematicamente contra todos os pedidos de ingresso de Taiwan na entidade, muito embora os estatutos da OMS defendam o acesso de todos os povos do planeta a melhores condições de saúde, e a ilha, importante elo no transporte turístico e comercial entre o Nordeste e o Sudeste asiático, seja um parceiro vital para o sucesso das redes globais de cooperação no controle e na prevenção de epidemias como o da Sars e a da gripe aviária.
Mais recentemente, um malcriado ofício do Departamento de Ásia e Oceania do Ministério das Relações Exteriores, comandado pelo embaixador Edmundo Fujita, determinou ao Escritório Econômico e Cultural de Taipé em Brasília, o desmonte de programa de bolsas de graduação e pós-graduação para estudantes brasileiros em Taiwan, do qual se beneficiavam um ex-aluno da Universidade Federal de Juiz de Fora e um jovem egresso da escola pública Centro Educacional do Gama, cidade da periferia do Distrito Federal.
PS: Após a publicação deste artigo, recebi um simpático telefonema do chefe do escritório de representação econômica e cultural de Taiwan, o senhor Chou (Shu-yeh, Chou), engenheiro chinês com mais de 45 anos de Brasil. Cursou mestrado na USP, tem filhos brasileiros que também estudaram naquela universidade e participou de projetos importantes, como o da construção do porto de Itaqui, no Maranhão, entre outros. Seu português é fluente e o papo, simplesmente imperdível..
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