Márcia Denser
Morrendo muita gente da cultura e literatura entre o final do ano passado e início deste: o crítico Leo Gilson Ribeiro, fada madrinha de Hilda Hilst, Bento Prado Junior, um intelectual da velha escola, e imaginem, Sidney Sheldon himself, o bom e velho ícone das letras enlatadas. Cruzes, só li um livro dele, O estranho no espelho, uma experiência e tanto, mágica, inexprimível: mal acabei de ler, já o havia esquecido!
No início do mês, morre minha agente literária frankfurtiana Ray-Güde Mertin, quer dizer, minha e de quase todo mundo, tipo João Ubaldo, Ignácio Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, Luiz Fernando Veríssimo, salvo Zé Rubem (Fonseca), agenciado pelo Thomas Colchie.
Ray começou como secretária do Colchie. Só que seguiu o exemplo da Carmen Balcels – agente preferida dos escribas brasileiros e latino-americanos até Gabriel García Márquez ganhar o Nobel em 1978 e ela, por tabela, ganhar como que na loteria esportiva e simultaneamente abandonar os outros agenciados. A partir de 1998, com o Nobel de Saramago, foi a vez da Ray desaparecer, embora já viesse nos deixando desde o início de 90 por vários razões, entre elas a vertiginosa queda na cotação das literaturas de ficção terceiro-mundistas, algo a ver com o colapso ideológico das esquerdas, da União Soviética etc. etc., o sucesso estrondoso de bobagens como Paulo Coelho, Layr Ribeiro, Mônica Bonfiglio, Harry Potter, todo o lixo de auto-ajuda.
Na época, Marcos Rey, falecido em 1997, queixava-se amargamente, ele que há muitos anos vivia de direitos autorais, sobretudo das traduções no exterior, e um autor desse nível não pode ser negligenciado pelo agente literário. Muita gente já escreveu sobre a Ray na imprensa, legal, mas posso apostar que ninguém disse isto. Quer dizer, ninguém quis contar de que modo ocorreu a intervenção dos agentes literários no Brasil a partir de 70 (aliás, década do “boom literário latino-americano”), algo demasiado significativo pra se deixar fora do obituário, tudo porque atualmente na imprensa os caras parecem escrever de luvas e a longo prazo oblitera-se absolutamente tudo, como quem sofre de catarata na inteligência (e que história burra é essa de inteligência emocional, inteligência sexual: inteligência de auto-ajuda?).
A longo prazo, espolia-se o leitor dum tesouro de conhecimento cultural, social, histórico (a mercadoria mais valiosa do mundo chama-se informação, meus queridos), da compreensão de suas profundas conexões e inter-relações na contemporaneidade, a que ele tem direito, mas que não mais se distribui em nome do merchandising, do lobby estúpido de si mesmo. Por derradeiro, duas efemérides das mais funestas, incluindo o merchandising: 80 anos que completaria Tom Jobim, e dez anos sem Paulo Francis.
Tento ler no Caderno 2 a matéria do Ruy Castro sobre o Tom: impossível. Uma enxurrada, uma parede de informações em estado massivo sobre CDs (que não comprarei), livros (que não lerei), filmes (que não assistirei), de como o samba do Tom deu isso que deu aquilo que deu a produção sobre o Tom, além do Tom, fora do Tom, letras, músicas, arranjos, teses, filmes, seriados, balas, bombons, blá, blá, blá, a matéria tinha de tudo. Menos o Tom.
Me admira o Ruy, que escreve, ou escrevia tão bem, há tantos anos na estrada, pouco mais do que eu, reduzido a esse texto burocratizado, raso, repetitivo, previsível, indigesto: ilegível. Penso, emburreceram o Ruy, os malditos editores deixaram o Ruy besta. No mesmo caderno, a matéria dos dez anos sem Francis: blá, blá, blá, idem ibidem. Textos que se reportam a outros textos a outros textos a outros textos a outros textos, matéria sem substância, tinta sobre o papel, alimento para o esquecimento: chega!
Então eu e minha Usis envenenada abrimos fogo.
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