José Rodrigues Filho *
No dia 29 de outubro do corrente ano, poucas horas após o encerramento da votação, a nação brasileira tomou conhecimento do resultado das apurações e dos candidatos eleitos em todo o país. O espetáculo tecnológico foi comemorado pelas autoridades eleitorais e pelo próprio presidente da República reeleito, que saíram em defesa do voto eletrônico, até mais com o propósito de amortizar as críticas que têm sido feitas aos sistemas de votação eletrônica no Brasil e no mundo.
Por sua vez, a mídia dominante não deixou de criar as costumeiras narrativas para a mente das pessoas, enaltecendo o espetáculo tecnológico do voto eletrônico, que tem mais o propósito de esconder as mazelas do nosso sistema político e eleitoral do que trazer a discussão do voto eletrônico para o seio da sociedade.
Nos últimos anos, o voto eletrônico no Brasil vem sendo discutido apenas em termos de sua vulnerabilidade e falta de segurança. Essa discussão mecânica e técnica do voto eletrônico talvez interesse mais aos fabricantes de urnas eletrônicas do que aos eleitores, uma vez que as questões centrais deixam de ser discutidas. É chegado o momento de se discutir, no Brasil, a relação entre a tecnologia do voto eletrônico e a cidadania. Essa é a discussão mais apropriada para a nossa realidade eleitoral, mas, infelizmente, neste espaço, não é possível situar todas as questões que afetam essa relação do voto eletrônico com a cidadania.
Contudo, uma tentativa será feita para mostrar que, tanto no Brasil como nos países mais desenvolvidos, o voto eletrônico vem sendo proposto para esconder as mazelas dos sistemas político e eleitoral. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo, pensaram em usar o voto eletrônico com o propósito de aumentar o comparecimento dos eleitores às urnas, os quais se encontram descrentes das instituições, principalmente dos partidos políticos e dos próprios políticos.
Como no Brasil esse comparecimento é feito à força, através da excrescência do voto compulsório, não se consegue enxergar a utilidade do voto eletrônico, a não ser para diminuir o trabalho das autoridades eleitorais e se ter o resultado de uma eleição dentro de poucas horas. Não há nenhuma evidência de que o voto eletrônico esteja melhorando a saúde de nossa democracia.
Apesar da excrescência do voto compulsório em nosso país, são fortes as evidências de desengajamento dos eleitores com os processos políticos e eleitorais, uma vez que o ato de votar parece irrelevante e inconseqüente para a vida dos cidadãos. As estatísticas de votos nulos, em branco e abstenção são prova disso, além da campanha do voto nulo.
Assim, tanto nos países acima citados como no Brasil, existe uma descrença total das instituições e dos processos eleitorais. Todavia, não é o voto eletrônico que vai resolver essa questão, razão pela qual precisamos justificar o uso do voto eletrônico neste país, já que nas democracias mais sólidas o voto eletrônico é visto com muita suspeita, quando se verifica o que se quer encobrir com a sua utilização.
Se a descrença generalizada das instituições aumenta, a nossa cidadania é afetada e diminuída, a partir do próprio ato de votar, quando as pessoas não mais parecem interessadas em votar. Daí, a crença de que o voto faz diferença começa a cair entre as pessoas. Do lado das instituições, o que se percebe é que não importa em quem votar, desde que se vote. Aliás, para alguns anarquistas de esquerda, se o voto mudasse alguma coisa, seria ilegal votar. Outros críticos vão mais além, dizendo que votar é um ato de dar legitimidade a bandidos que ganham a licença para saquear os cofres públicos.
Portanto, se o sistema político está podre, com ele apodrece o ato de votar. Nesse caso, não é o voto eletrônico que vai salvar a situação. Votar é um ato político da mesma forma que não votar o é. Estamos mais do que carentes de uma reforma política que preceda uma reforma eleitoral, com o propósito de resgatar o ato de votar como um direito e um dever cívico, tornando-o uma norma social, de modo que o engajamento político e a luta de idéias sejam as medidas da qualidade da nossa democracia.
Por sua vez, o nosso sistema eleitoral, mais voltado para proteger os partidos políticos dos que os cidadãos, precisa de uma mudança substancial. É preciso retirar o controle excessivo da estrutura jurídico-eleitoral do voto do eleitor, repassando esse controle do voto para os eleitores. Isso se aplica às máquinas de votar que têm mais controle do voto do que os próprios cidadãos.
Não é fácil tornar o voto um dever cívico diante de um sistema que estimula e estima a corrupção, compra de votos, etc. Diante disso, mais difícil ainda é torná-lo uma norma social. O uso do cinto de segurança e as restrições de não fumar em determinados ambientes, por exemplo, tornaram-se normas sociais facilmente em nosso país.
A classe política e a sociedade como um todo têm que promover mudanças visando a tornar as eleições símbolos e rituais indispensáveis à saúde de nossa democracia e o ato de votar numa norma social e um direito e dever cívico. Essa transformação se dará com a melhoria da cidadania e não através do voto eletrônico. Precisamos investir no nosso eleitor e não em urnas eletrônicas, com vem acontecendo. A cidadania aumenta o engajamento das pessoas e não tem pressa para se obter o resultado de uma eleição em poucas horas. Os símbolos, os rituais e a cultura estão embutidos na cidadania.
Contudo, a utilização das tecnologias de informações e comunicações (TICs) pode contribuir para melhorar a cidadania. A internet, por exemplo, pode ser utilizada para levar informações para os cidadãos e eleitores. Em vez de gastar milhões de dólares com o voto eletrônico, o governo deveria empregar esses recursos em tecnologias mais úteis para a sociedade, informando melhor os cidadãos. A instalação de pontos e centros de internet nas cidades do país poderia tornar os nossos eleitores e cidadãos mais informados, a menos que os governantes não tenham interesse em melhorar suas práticas democráticas. O uso do voto eletrônico só vem aumentar as desigualdades e divisões, inclusive a digital.
O eleitor utiliza uma espécie de computador para votar, durante dois ou três minutos, de dois em dois anos, mas não tem o direito de usar o computador a vida inteira. Enquanto a Justiça Eleitoral investe em milhares de máquinas de votar, não é capaz de oferecer, em seus sites, sequer informações básicas para os eleitores. Por que não investir no eleitor? Do ponto de vista da cidadania, é justo se colocar milhares de analfabetos e famintos para votarem eletronicamente?
Ademais, os gastos com o voto eletrônico são mais elevados do que os gastos com muitos outros programas sociais e de saúde, que trazem melhorias das condições de vida e cidadania para as pessoas. Enfim, o projeto do voto eletrônico no Brasil é direcionado mais para os interesses do mercado e de atores corporativos do que para ampliar a cidadania, melhorar as práticas políticas e o engajamento político dos cidadãos.
Ao que parece, o que as nossas autoridades tentam comemorar está totalmente dissociado da construção de um conceito de cidadania ativa para os cidadãos brasileiros. Não se sabe até quando a nação brasileira poderá suportar a ficção de eleições ornamentadas com mágicas, bebidas, shows e amparadas por esquemas de corrupção amplamente reconhecidos. Com o descrédito das instituições, dos políticos e seus partidos e, somando-se a isso, o projeto do voto eletrônico, estamos assistindo à construção de uma engenhoca que reduz a cidadania, com resultados imprevisíveis e temerosos.
* José Rodrigues Filho foi pesquisador visitante nas Universidades de Harvard e Johns Hopkins e atualmente é professor da Universidade Federal da Paraíba, desenvolvendo pesquisa sobre o governo eletrônico no Brasil.
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