Tavares Dias*
Meu amigo Adroaldo, que se auto-intitula Visconde de Cabaceiras, faz questão de dizer que todos os eus dele, o profundo e os outros, são full-time de botequim, assim: psicanalista de botequim, treineiro de futebol de botequim, antropólogo de botequim, sociólogo de botequim, os cambaus (que o Paulo Francis defendia que fosse o escambau, ou o contrário, já não me lembro, mas a pendenga já existiu e o mestre Millôr é certamente testemunha e quiçá parte dela) de botequim.
Bão: agora a entidade de frente incorporada no meu amigo é o antropólogo, aqui já devidamente epitetado como sendo de botequim. Adroaldo vai pelo quarto chope (in) devidamente entremeado com steinhegers, bebidos à moda submarino, o que, para os não-iniciados, significa encher até a borda um pequeno cálice da dita beberagem teutônica e fazê-lo mergulhar na tulipa de chope (com chope), em pezinho, sem derramar. Dali em diante, a cada gole, cumpre à mistura de alta octanagem depletar toda a serotonina que o cérebro do vivente tenha de reserva, ao tempo em que lhe cria uma assimetria nos joelhos que o levará, em pouco tempo, do deixa-que-eu-chuto ao aqui-tá-fundo-aqui-tá-raso, caso tente bipedar-se para desbotecar-se a tempo de chegar em casa e embriagatinhar escada acima, verbo e imagem que o escriba pede emprestados ao mestre Rosa, mais precisamente de seu conto Nós, os temulentos.
Por conta dessas e de outras melosquências, palavra muito mais bonita no tempo do trema, convém, a essas alturas, que o narrador traga à luz, verdade que com algum atraso, essencial informação: as filosofices aqui relatadas, que nesta altura se apresentam ainda no limiar do despautério mas prometem transcender todo cartesiano proceder, se passam em São Paulo, haja vista que quaisquer três submarinos dos tais acima descritos seriam suficientes para colocar o octanado em combustão espontânea em qualquer boteco brasileiro esquinado do Rio de Janeiro pra cima.
Pois, se bem se lembra o narrador onisciente e onipresente, vitupera então o antropólogo de botequim de quem o Adroaldo, Visconde de Cabaceiras, é cavalo no momento:
-Maconheiro é responsável pelo enriquecimento do tráfico de drogas é o cacete. Libera pra cada um plantar num vasinho da área do apartamento e babau tráfico. Responsáveis pelo tráfico são as autoridades que sabem tudinho tudinho quem é que financia e não tem peito pra ir nos caras e dar um baculejo federal e manter a pressão até o fim. Ninguém mata a galinha dos ovos de ouro. Veja-se a quantidade de bancos que opera para o narcotráfico e tá na cara que o mundo já perdeu essa guerra. Um americano chamado James Mills, contratado pela DEA, escreveu um livro chamado O império subterrâneo (The subway empire). Saiu no Brasil pela Best-Seller. O sujeito prova cabalmente que o maior traficante de drogas do mundo é o governo dos Estados Unidos, porque quando a agência antidrogas deles, lá, a DEA, armava o bote em cima do grande produtor de drogas, fosse no Panamá, na Colômbia, no Triângulo do Ópio ou em tantos outros lugares, logo o Departamento de Estado mandava abortar, para não atrapalhar negociações visando à instalação de bases naqueles países. E por aí. No Brasil, então, só cai quem é dedado. Ou então quando o cara mistura seu negócio com sua própria dependência química e começa a dar bandeira demais, provoca comoção pública. Aí os donos do movimento elegem um boi de piranha para acalmar o populacho, ávidos repórteres que nunca levantam a bunda de uma cadeira na Redação publicam o B.O. da polícia com os Autos de Resistência como sendo a história inteira, e a linguística tá pra lá de aparelhada pra provar que isenção jornalística não existe, porque as escolhas lexicais sempre revelam o ser político se manifestando no falante/escrevente, jornalista ou não, e contabilizam-se os presuntos, pranteiam-se as vítimas inocentes, e tome novela, e tome mulheres vegetais televisivas com protuberâncias lombares que o nosso imaginário tropical não esquecerá jamais nos próximos 15 minutos.
E, por conta do parágrafo acima, prenhe de fraseados, ponha-se em ata que o Adroaldo faz submergir o periscópio do quinto submarino, à guisa de ajeitar a respiração. E dirige ainda umas tantas rabugices ao estilo do narrador, que, segundo ele, teria mais carinho com a respiração do leitor se também andasse já pelo quinto steinheger.
O narrador estranha a defesa feita por um dos eus do Adroaldo aos diletantes da marofa, porque, até onde sabe, se o eu profundo dele algum dia dera dois não teriam sido mais que prosaicos beijinhos de língua numa violônica balzaca dos peitos rijos que… bem, sem digressões. Outra hora falamos da moça, cambada de empedernidos voyeurs. Prometo.
Câmera 2, então, na algaravia do Visconde de Cabaceiras: toda civilização que o mundo conheceu teve como uma de suas marcas principais o fato de ter produzido algum tipo de pão e algum tipo de substância psicoativa pra fazer a cabeça do povo. E algum circo também. Sem esquecer dos célebres brioches, à falta de pão.
Um pequeno espaço é necessário, aqui, para a estética da recepção, aquela que diz que a obra literária dialoga com o que o leitor já leu e com o que ele não leu, também: o narrador reconhece que sua condição de único entre nós que conhece o Adroaldo o obriga a dizer, para melhor entendimento geral, que as entidades sócio-espirituais que o utilizam como cavalo não costumam observar parâmetros como os dos cultos afro-brasileiros sérios, nos quais cada orixá costuma ter seu momento e seu ritual próprio.
Que nada. No Adroaldo, na primeira meia hora do papo já é possível perceberem-se verdadeiras teleconferências na sua TV cabeça.
De modo que logo o psicanalista de botequim, que o narrador reconhece pela pose, pelo cofiar de uma barba inexistente, o fictício apoiar-se numa bengala e outros traços particulares, entre eles o uso repetido de expressões como real, simbólico e imaginário, mete-se por minutos a lacaniano para logo voltar no tempo e vociferar, por sua conta e risco, que se pode encontrar em Freud, mais exatamente em O mal-estar na civilização, a explicação para o fato de que sem fazer a cabeça ninguém segura a onda, que ser civilizado é ser impotente. E tome princípio do prazer e princípio da realidade, e instinto de vida e instinto de morte, e eros e thanatos, e lá vai.
Por curtíssimo tempo, revele-se. Na contramão do discurso, feito um zagueirão sem freio que atirasse o centroavante no fosso, quase nos braços da tigrada, logo o sociólogo, também sem pedir licença, mete-se a buarquiano e desfia, já meio trôpego, um “e a gente vai tomando/que também sem a cachaça/ninguém segura esse rojão”.
-Marginal? Marginal é o cacete, lá vai o Adroaldo, cavalo agora de cientista social de difusa linha. “Esse conceito escroto, criado pela Escola de Chicago, não se sustenta mais. O capitalismo sempre precisará das massas miseráveis, porque é sobre elas que pode ganhar na quantidade, vendendo navios e navios lotados de quinquilharias baratas. Logo, marginais um fumo. As massas, que ainda por cima têm essa puta mania de pagar dívidas em dia, mercê da culpa judaico-cristã, são parte integrante e inalienável do arcabouço capitalista, que sem elas não sobreviveria o tempo que Lula leva entre uma gafe e outra, o que aliás outorga a ‘o cara’ mais um título inédito, já que anteriormente a menor fração de tempo mensurável, pelo menos no Rio de Janeiro, era sabidamente aquela existente entre a abertura do sinal e a buzinada do carro de trás”.
Súbito, desenha-se um cenário dos mais angustiantes. Corre o risco de o Adroaldo descambar para Sarney, as alianças espúrias do governo, Maluf, Quércia, as justificativas para o projeto de hegemonia, toda aquela xaropada de que a gente não aguenta mais falar, pelo menos num feriadão, que ninguém é de ferro.
Mas não. Sem qualquer cabalismo, o sétimo submarino opera nele um confortável milagre: mais uma vez invocando o Rosa, na obra citada, “deu-lhe a amável nostalgia”.
Cansado, o narrador, contrafeito, o deixa, às duas da matina, entregue ao Manduca, o inefável gerente do boteco, com autoridade para negar-lhe o oitavo submarino, passar o cartão do Adroaldo na maquineta, pagar o táxi, ligar meia hora depois, pra saber se aportara em segurança.
Àquelas alturas, o Adroaldo já anestesiou todos os seus personagens. Só resta ele próprio, zuzubém, no epicentro de poderosa ventania a que os outros irmãos de boteco parecem infensos.
Tem nos olhos meninos, no dizer de Bandeira (em Poética), “(…) o lirismo dos loucos, o lirismo dos bêbados, o lirismo difícil e pungente dos bêbados, o lirismo dos clowns de Shakespeare.”.
Pano rápido.
*Tavares Dias, 58, é leitor amadoramante e viciado dependente de escrevinhações. Frequenta o E.A. (Escritores Anônimos) desde a juventude. Despontou para o anonimato em 1995, já tendo perpetrado cinco livros, entre poesia, reportagem, conto e crônica. Quando em surto, ameaça cometer ainda outros.
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