O bom mesmo do teatro é que depois a gente
vai pra beber com os amigos
(Mário Bortolotto)
Uma vez criei um personagem chamado Styx, um demônio de gelo em cujas veias corria mercúrio prateado em vez de sangue. Aliás, é muito natural que escritoras sejam possuídas por demônios de gelo afinal, o animus feminino é nossa ligação com o Inconsciente Coletivo (leia-se inspiração), senão não se escreve ou se escreve merda e estou fazendo todos estes rodeios porque uma das coisas que mais me intrigaram no novo livro do Mário Bortolotto, DJ Canções pra tocar no inferno, (S.Paulo, Barcarolla, 2010) foram os olhos gelados de Cardan, seu alterego, mas acontece que musas (ou animas) as entidades correspondentes masculinas que guiam os artistas para o inferno (ou o céu) definitivamente não têm olhos gelados. A menos que a história aí seja outra psicanaliticamente falando algo que não vou explicar afinal é apenas uma teoria até porque não tenho tempo, saco, espaço e até convicção a respeito, de forma que não vem ao caso.
A coisa é mais complicada e mais simples: Mário é aquele elemento paradigmático que Zé Rubem (vejam bem, o PRIMEIRO Zé Rubem, de Lúcia MacCartney e Feliz Ano Novo) definiu já em 1975 – há 44 anos luz atrás, portanto assim:Gente como nós ou vira santo ou maluco ou revolucionário ou bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido. (Fonseca, Feliz Ano Novo, Sampa, Cia das Letras, 1975).
Melhor ainda: marginal. O que o caracteriza é sua posição solitária Eu não gosto muito de pessoas. Gosto de mulheres em alguns assuntos específicos, mas bem poucas gostam de mim, por isso me faço acompanhar por latinhas e garrafas de cerveja. (Mais Uma de Lenny Bill, pg 75) seu niilismo essencial, já que ele não se enquadra em qualquer grupo, seja artístico, político ou social. Até os beatniks, ícones da contracultura do século XX nos EUA, tinham seu projeto literário, um sentido e um desejo de mudança, contudo na literatura urbana do Terceiro Mundo pós-industrial, pós-moderno, pós-político e pós-antigo, o escritor então vira marginal não como pária ou excluído mas na situação de sujeito anti-social, descrente de si e cada vez mais longe do semelhante.
Sem heróis, nem modelos a seguir, sem utopias, sem ideais, mas também sem esperanças, o escritor abandona o espírito de querer mudar o mundo para abraçar mais e mais numa espécie de agudo e insensível movimento (À procura de sexo e ação, pg.93) auto-rotatório que não leva a parte alguma, tampouco se esgota.
A empresa de MB é dar voz àqueles que não contam a História. Algo também percorrido por Zé Rubem: quem não se lembra do festim macabro promovido em Feliz Ano Novo, aliás escrito do ponto de vista dos marginais? Embora os contos de Mário não sejam propriamente contos, mas exercícios de captura de fragmentos da reality mais real, rasteira, ordinária, cruel, desumana, seja em Sampa, Rio ou Blumenau.
Leitura absolutamente interdita a corações, mentes e estômagos babacas, embora profundamente instrutiva, obrigatória até, só pra deixar de ser babaca. Mas se você quer MESMO saber o que há lá fora, nesse caso, Bortolotto e seu alter-ego Cardan (isto não era marca de carburador, Mário?) são mestres e guias perfeitos como o diabo.
Em tempo: No início desta coluna até pensei em botar MB em paralelo comigo e Mirisola, porém como bons ex-burguesinhos e riquinhos que fomos, bem alimentados e bem mimados, realmente tenho que admitir que não somos páreo para esse Cardan do capeta.
Uma última canção infernal: Out and Nowhere.
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