Estamos mais próximos do seu aniversário de nascimento,12 de setembro (de 1948), do que de sua morte, 26 de fevereiro (de 1996), mas de qualquer forma são dez anos sem Caio Fernando Abreu.
Fomos amigos, cúmplices, irmãos, inimigos íntimos, éramos semelhantes em nossas personas públicas, nossas máscaras, armaduras & todo arsenal que mobilizávamos para vencer na carreira literária: armados até os dentes.
Para escritores brasileiros rigorosamente da série literária, a aposta é altíssima, o ganho quase nulo e o resultado para lá de incerto. Paralelamente à nossa criação, tínhamos que inventar a nós mesmos e, nesse aspecto, fomos muito eficientes.
Mas, aprofundando o exame de personalidades, caindo as máscaras, chegando à maturidade, também éramos totalmente diferentes e é desse Caio absolutamente outro que quero falar e é impossível tentar apreendê-lo sem associá-lo à sua literatura.
Affonso Romano de Sant’Anna observa que em Tom Jobim e Vinícius de Moraes, “a biografia e a bibliografia informam o mesmo comportamento estético-existencial”. Quanto a Caio F, eu diria que foi além, pois à sua vida & obra ele acrescentou sua morte, encarnando a contragosto o Espírito dos Anos 80, a década perdida.
Como Prometeu do mito grego, preso à rocha, ligado para sempre à “preciosidade dificilmente alcançável”, mas contra sua vontade e para seu próprio mal, a identificação de Caio F com o zeitgeist ligado à Aids, também associou para sempre sua obra a uma literatura gay, com prejuízo dos demais aspectos.
Porque Caio não queria morrer, claro, mas basta um exame superficial em quase todos os textos que escreveu a partir de 80, para captar a onipresença da morte pela Aids, metafórica ou metonímica, nos temas, atmosferas, citações. Então foi como se a invocasse, convidasse, previsse, assumindo seu clima, exercendo uma estética autocondenatória.
Afinal, sentia-se condenado, queria-se condenado, uma condenação que fazia sentido no plano moral e religioso de seus rígidos padrões herdados, acabou fazendo sentido também no plano existencial. A primeira autocondenação foi inconsciente, a segunda não, mas o mal já estava feito. De modo que sua morte foi suicídio.
Por isso não posso perdoá-lo. Quer dizer, posso compreender e perdoar o amigo, não o escritor, esse eu não perdôo mesmo.
As Cartas apontam algumas dominantes em Caio F:
a) A absoluta necessidade que tinha de mentir para si próprio, auto-enganar-se, seja nos seus amores, seja na sua morte. Consciente ou inconscientemente, ele os associava;
b) A absoluta necessidade que tinha de mentir para os outros, ocultar sua natureza profunda. Caio era cheio de mistérios, de segredos. Explico: para o grupo de escritores com quem conviveu em São Paulo de 78 a 94, composto por Lygia Fagundes Telles, Julieta Godoy Ladeira, Edla Van Steen, Ricardo Ramos, Sílvio Fiorani, Marcos Rey, Raduan Nassar, Anna Maria Martins, Ignácio de Loyola, Ivan Ângelo, eu mesma, entre outros, Caio silenciava suas amizades & conexões gaúchas, supondo que o julgássemos provinciano; silenciava suas peças de teatro, seus textos para a televisão que seu lado Jacira, frívolo, queer, curtia escrever, supondo que isto o diminuiria aos nossos olhos, uma vez que o “núcleo duro” de escritores desconsiderava tal produção enquanto arte. Muito ascendente em Libra, Caio preferia revelar apenas o que supunha ser agradável ao outro;
c) A absoluta necessidade de Caio de expressar sua natureza gay, sua “ânima desocupada” – como eu a chamava poeticamente, meio brincando, meio a sério, ele gostava da expressão – que socialmente ocultava, manifestava-se com força total na linguagem e na escrita frenética, urgente, compulsiva de milhares e milhares de cartas ao longo de sua vida, forma de expressão entre o fuxico e a confissão.
No fundo, as Cartas tinham uma função terapêutica no sentido de manter sob controle – “ocupada”, no sentido positivo – aquela “ânima desocupada”, fútil, atenta a banalidades e coisas de somenos, ridícula, menor, tola, como qualquer mulher inculta e ávida por mexericos, unicamente interessada nos galãs das novelas, no que tocava no rádio, nas roupinhas da estação, e cuja maior qualidade residia no senso de humor queer, que tornava mais leve, arejava a pesada melancolia em Caio F…
… deixada livre, teria sido um desastre para o escritor.
Quem disseca essa problemática magistralmente é Proust, quando escreve sobre a “mulher que existia no interior do barão de Charlus” em certos fragmentos particularmente geniais de Em Busca do Tempo Perdido. O exemplo mais recente são as citações de Marcelo Mirisola na novela Acaju, quando se refere ao “jardim gay de Caio F”: será que as impressões de Caio F no imaginário posterior se reduzem a estereótipos gay? O que é, simultaneamente, inevitável e lastimável, sobretudo quanto à recepção futura da ficção do autor gaúcho.
Outro dia, conversando com Silvio Fiorani – autor da mesma geração, assim como João Gilberto Noll, Sérgio Santanna, Domingos Pellegrini, eu mesma -, observamos que a carreira prematuramente cortada não permitiu que Caio transcendesse a questão do gênero em sua ficção, algo que ocorreria com o tempo e ele era talentoso demais para não percebê-lo. A visão, a emoção, a manutenção do ponto de vista dum narrador exclusivamente homossexual (ou qualquer outra obsessão monomaníaca) restringe, limita e aprisiona o grande artista.
Porque, a despeito dos aspectos problemáticos do ser humano transitório, da pessoa que foi, apesar dos pesares e de si mesmo, graças à sua ficção, Caio Fernando Abreu é um grande artista.
Assim, Caio, amigo, irmão, cúmplice, inimigo íntimo, a você deixo esta irredenção, minha irremediável saudade.
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