Ligar o indivíduo e suas necessidades a espaços públicos e mentes coletivas é uma “distopia” que a TV vem concretizando da pior forma possível ao transformar essa “mente coletiva” – espaço público altamente valorizado – num confessionário das intimidades irrelevantes, embora Ezra Pound já tenha dito que “qualquer idiota pode ser espontâneo”.
Parafraseando meu querido Ignácio de Loyola Brandão – que, aliás, acaba de entrar para a Academia Paulista de Letras, quando mais que merecido seria seu ingresso na ABL, a julgar por quem lá está encastelado numa imortalidade pra lá de duvidosa, sim, o Ignácio, por sua vida, obra e militância, ninguém divulgou tanto a literatura brasileira contemporânea nos últimos 40 anos – que dizia, referindo-se à má literatura inscrita em concursos de contos, “a esse tipo de programa não se assiste para não ficar besta”. Porque reality shows como BBB e Casa dos Artistas transformam o espaço público televisivo em lata de lixo da humanidade. São o que eu chamaria de Desacontecimentos Inc.
Citando Deleuze: “num espaço público privilegiado, qualquer um pode falar sobre tudo, então confessam-se crimes, pecados, pensamentos, desejos, confessam-se os sonhos, o passado, a infância, doenças e misérias, emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito”. Ter acesso às confissões, vigiar comportamentos, julgar e excluir por voto anônimo – ainda que não fosse marmelada, como estamos carecas de saber, fosse pra valer – é a base dum “democratismo” socialmente inoperante, pois não se decide nada importante, o que se decide é o de somenos. Lembrando Guy Debord, quem fica sempre olhando para saber o que vem depois, nunca age! Este é o espectador ideal. [1] [1]
Como já demonstrou Michel Foucault, a transcrição por escrito – hoje via vídeo – das existências reais não é mais um processo de “heroificação” (a crônica dos fatos da vida de um homem) porque funciona como mecanismo de objetivação e sujeição. Em artigo recente [2][2], o autor observa que, se já abandonamos a “heroificação” e caímos na “coisificação”, o momento exige a compreensão do caráter paralisante e do imenso poder despotencializador da ficção barata, de quinta categoria, promovida pelos shows da vida.
Os reality shows atraem e paralisam os espectadores, despotencializando-os, constituindo o apogeu da sociedade do espetáculo, num mix de neodarwinismo com lei de Gerson (sobrevivência dos mais canalhas), sociedade do controle via marketing, redução da complexidade do imaginário audiovisual e produção de monoculturas mentais (a condição humana reduzida ao seu mínimo denominador comum). Em tais programas, vence quem passar pelos crivos da audiência manipulada e manipulável, do mercado regido por éticas e estéticas perversas e do distinto público previamente desmoralizado.
E mais: referida criatura deve vencer tanto no show quanto na vida, dimensões que se fundem numa única realidade. A realidade, sabem, aquele lugar onde nada dá certo, onde ninguém faz planos, nem pensa no futuro, até porque não existe futuro. Desacontecimentos Inc.
[1] [1] Ivana Bentes, “Guerrilha de Sofá ou A imagem é o novo capital”, www.bocc.ubi.pt
[2] [2] Silvio Mieli, “Big Brother Brasil, imagens puras da exceção”, www.brasildefato.com.br
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