Márcia Denser
Aos leitores que me têm cobrado uma definição política, alguns me considerando francamente petista, outros que me esquivo pelos meandros dum discurso tortuosamente ambíguo por conta dos dons (?) de escriba, me confesso radicalmente progressista. Mas, como meu segundo dever é com o leitor (porque o primeiro, digamos, o dever zero, é ser fiel a mim mesma), o objetivo é divulgar e promover a discussão em torno do que dizem os analistas políticos – sobretudo os progressistas, fazendo a crítica e a denúncia do privilégio e da injustiça social.
Contudo, é preciso avaliar os vários pontos de vista, considerar tempo e lugar a partir dos quais fazem a análise, traçam o panorama.
Numa perspectiva sincrônica, de curto prazo, a respeito da renovação presidencial, o sociólogo Emir Sader considera que se é ruim com Lula, pior será sem ele. Um governo que venha substituir Lula pode retomar o processo de privatizações – Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal.
Aliás, senão fosse o protesto e a rápida mobilização dos metroviários paulistanos, o tucano Alckmin teria, na moita, privatizado o Metrô. Na moita, porque a grande imprensa daqui de São Paulo, tipo FSP, Veja etc. não divulga operações do interesse das elites precisamente porque são extremamente contrárias aos interesses da população. Que, por sua vez, "inteligentemente", elegeu Serra e Alckmin, que por sua vez governam contra os interesses populares, num círculo vicioso de deixar qualquer um maluco.
Esse "novo" governo também pode mudar a política externa, voltando a ser subserviente aos Estados Unidos, como foi com FHC. Seria um desastre para a aliança entre Brasil, Venezuela, Cuba, Argentina e Uruguai, da qual nosso país é o eixo. Para Sader, a alternativa ao governo Lula é a direita tradicional.
A crise política é provocada porque o velho, que é o neoliberalismo, trata de sobreviver quando não é mais possível. As políticas neoliberais não têm base social de apoio, não permitem a construção de políticas sociais universalizantes, promovem a estagnação em função da taxa de juros, canalizando recursos para o capital financeiro, isto é, improdutivo. Isso faz com que todos os governos acabem perdendo a credibilidade com maior ou menor rapidez. E a isso se acrescenta uma crise de representação política, pois esta não mais representa os interesses dos diferentes setores sociais da população.
Pelo apoio externo e interno que tinha, Lula, ao assumir, era o presidente mais forte do mundo, considera Sader. Se dissesse ao FMI, ao Banco Mundial e à OMC que suspenderia o pagamento da dívida até os brasileiros comerem duas vezes por dia, teria plenas condições de fazê-lo. Sua política econômica neoliberal precisa ser corrigida. Caso contrário, é ela quem vai derrubá-lo do poder. Vide os governos tucanos paulistas e a crise do PCC, vide a impopularidade retrospectiva de FHC, que venceu a inflação, mas não promoveu a inclusão, ao contrário.
De fato. Numa perspectiva diacrônica, de longo alcance, o crítico Ítalo Moriconi, em conferência ultra-recente destinada ao público universitário norte-americano¹, observa que Lula transformou-se no símbolo da mais extensa e irreversível transição democrática ocorrida no país (se comparada com a instauração da República em 1889 ou a queda de Getúlio em 1945). O Brasil é agora uma das mais populosas e sólidas democracias eleitorais do mundo. Mas é ainda uma das sociedades mais injustas do planeta.
Ao valor da democracia política agrega-se o da democracia substantiva, cuja meta é a inclusão social. Se dos anos 20 aos 70 do século XX o valor máximo na sociedade brasileira foi a modernidade, hoje, o sonho de justiça social empolga até mesmo setores conservadores da sociedade. Inverte-se a equação economicista. Boa parte das elites intelectuais brasileiras professa atualmente uma espécie de culturalismo, acreditando que a inclusão social começa pela cultural e que ambas trarão uma modernização real, não mais à brasileira, aquela que repõe o atraso, segundo Roberto Schwarz.
Por se tratar de um país-continente, existe uma geopolítica da tensão moderno/arcaico na sociedade brasileira. Moderno é São Paulo, arcaico é o Nordeste. Minas e Rio são lugares de encontro entre o Sul moderno e o Norte arcaico.
O sertão pós-moderno são as periferias urbanas, donde MV Bill, Ferrez, Cidade de Deus e o PCC constituírem fenômenos ligados à tomada de consciência social. Mas isso é outra história que continua na próxima coluna.
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¹ Moriconi, Ítalo. Brasil 1956 X 2006: Shifting priorities, from development urgency to cultural agency (Mudando prioridades, da urgência do desenvolvimento para agência cultural). Rio, 2006.
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