Celso Lungaretti *
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu longa entrevista a Kennedy Alencar, que foi matéria de capa da Folha de S. Paulo e está integralmente reproduzida na Folha On Line.
O que dela se filtra é, principalmente, a metamorfose do Lula num mais do que competente político convencional.
Caíram do cavalo os que apostavam na sua incapacidade de pensar, falar e agir como presidente da República, por ter formação escolar apenas básica.
Pelo contrário, suas palavras e raciocínios são os mesmíssimos dos presidentes que essa gente erige como modelos.
Decepção real é a dos idealistas que apostaram nele e fizeram campanhas voluntárias, com doação extrema dos seus esforços, para colocá-lo no poder.
A faixa presidencial o fez esquecer ideologia e se tornar mais um adepto do realismo político, com tudo que isso tem de sinistro num país tão desigual e tão injusto como o Brasil.
Lula já emitiu, com outras palavras, o conceito de que só um desmiolado continua esquerdista ao se tornar sexagenário.
Agora ele acrescentou outras pérolas na mesma linha. Por exemplo: “Não utilizo mais a palavra burguesia”.
Coerentemente, qualifica Roger Agnelli (presidente da Vale) e Eike Batista (o homem mais rico do Brasil) com a mesma expressão: “grande executivo”.
Eu preferia os tempos em que ele designava tais figuras como burgueses fdp. Mas…
Também é chocante ouvir Lula confessar que suas afirmações aparentemente tão convictas de outrora não passavam de papo furado: “Quando se é oposição, você acha, pensa, acredita. Quando é governo, faz ou não faz. Toma decisão”.
Ou seja, se você não tem o poder, o que diz não passa de retórica inconsequente. Quando você está no poder, aí sim é que mostra quem realmente é, por suas atitudes.
Deu-me razão. Há anos venho afirmando que o governo Lula se define mesmo é por sua política econômica – no caso, neoliberal, idêntica à de FHC.
Fiquem os leitores sabendo que ele concorda com esse critério. Discurso é conversa pra boi dormir, o que vale é a ação.
E a atuação concreta do governo Lula prioriza o grande capital, os banqueiros e o agronegócio. Em suma, os burgueses, que continuam existindo e sendo socialmente perversos e nocivos, pouco importando a forma como os denominemos.
Lula também deixa claro o motivo de hoje fazer coro aos reacionários em suas críticas aos MST: “Em 2002, fizemos uma pesquisa em que 85% diziam que a reforma agrária tinha de ser pacífica. Levei mais de 15 dias para que minha boca pudesse proferir reforma agrária tranquila e pacífica. Essas mudanças têm de ter. Algumas coisas que a gente fala, pensando que está agradando, não batem com o que povo pensa”.
Só esquece de dizer que o que o povo pensa tem 99% a ver com o que a grande imprensa martela na sua cabeça. E que a cobertura das ações do MST é extremamente tendenciosa e distorcida.
Mas, para um político convencional, o que importa mesmo é aquilo que o povo acredita ter concluído por conta própria, embora, na verdade, lhe tenha sido impingido pela indústria cultural.
Então, se houver considerável maioria de posições contra o MST, nas tais pesquisas de opinião nunca totalmente confiáveis, é nessa direção que o político Lula irá. Sorry, MST!
“Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”
O Lula realista só não aprendeu a falar muito sem dizer nada, como fazem os outros políticos convencionais. Às vezes, seus excessos retóricos permitem que descortinemos a verdade oculta atrás dos biombos.
Seu maior ato falho, desta vez, foi proclamar em alto e bom som o que realmente são os partidos da base aliada: “Quem vier para cá não montará governo fora da realidade política. Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”.
Depois disso, nada mais surpreende.
Nem a defesa que faz de sua própria atuação no Sarneygate, não por considerar inocente o “grande republicano” (é assim que Lula se refere a ele noutro trecho), mas porque, se fosse feita justiça, a presidência do Senado seria assumida por um tucano. Ah, a maldita governabilidade, quantas infâmias se cometem em seu nome!
Nem sua justificativa tosca (“Não tenho relações de amizade, mas relações institucionais”) para a atual promiscuidade com figuras que o Lula do passado abominaria, como Fernando Collor, Renan Calheiros e Jader Barbalho.
Nem seu entendiado descaso, só faltando bocejar (“Palocci pode reconstruir a vida dele”), diante da incompatibilidade extrema entre o que Antonio Palocci fez (mobilizar todo o poder do Estado contra um mero caseiro) e a proposta original do PT (representar os humildes e os fracos na sua luta contra os poderosos).
O Lula realista, que admite fazer alianças com quaisquer Judas, escolheu ser Pôncio Pilatos: lava as mãos dos resíduos imundos da governabilidade e vai em frente.
Que nunca lhe falte sabonete, e que não venha a ter também nas mãos o sangue dos inocentes – é o que lhe desejo.
* Jornalista e escritor, mantém os blogs
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/ e http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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