Márcia Denser *
A diluição da fronteira entre a alta cultura e a cultura popular, fenômeno crucial da pós-modernidade, acarreta apagamentos e interpenetrações em muitos outros âmbitos, como os da ética, da política, da educação. A propósito, em texto recente, Affonso Romano de Sant’Anna atualiza um de seus motes teóricos que aborda a questão das poéticas de centro e de periferia.
Desde os anos 70 os limites entre as duas já eram tênues, uma vez que bandido e mocinho trocavam os papéis, porque artistas e intelectuais nos anos 60 sentiam forte sedução pela marginalidade, seja por causa da cultura underground, seja porque a guerrilha sul-americana favorecia a contaminação semântica e ideológica.
A exemplo, lembramos um painel do artista Hélio Oiticica onde ele representava o cadáver do bandido Cara-de-Cavalo com a frase: “Seja marginal, seja herói”, sem contar a música “Charles, anjo 45” de Jorge Benjor, ambos evidenciando uma visão romântica do crime. O autor observa que “era um tempo em que alguns achavam que fumando maconha e cheirando cocaína iam derrubar a ditadura e abalar o capitalismo”.
Contudo, em 2005, numa das batalhas entre polícia e traficantes do Rio, os jornais publicam uma frase estampada sobre o corpo de um bandido morto: “o lado certo da vida errada”. Algo a sintetizar a complexidade do drama social que evoluíra 30 anos depois. A interpenetração de “certo” e “errado” indicando sua persistência, sua resistência.
Assinala-se que ao redefinir “certo” e “errado” e fazer uma cisão problemática não “entre” um e outro, mas “dentro” de um e outro, os bandidos estão, topológica e epistemologicamente, refazendo conceitos de “verdade” e reescrevendo a “realidade”, reafirmando o aspecto “revolucionário” – a revolução possível – aquela a qual já aludia o chefe do tráfico duma favela carioca, Marcinho VP, que dizia organizar um partido guerrilheiro e revolucionário dentro do narcotráfico. Assim como, em Sampa, Marcola reinvidica reformas no sistema penitenciário via ação violenta do PCC, pois esta seria “a única língua que sabemos falar”.
No universo da arte, a “arte engajada” dos anos 60 revelava uma atitude pedagógico-paternalista em relação à periferia. Havia na ação da “esquerda” algo como uma espécie de remorso cultural em relação aos excluídos. Segundo Romano, ficava-se dilacerado entre tentar atraí-los para o centro ou, ao contrário, aderir à periferia, daí as equivocadas questões de se a arte deveria baixar o nível ou se os operários é que deveriam ser elevados. Ironicamente, a adesão dos intelectuais ao proletariado funcionaria mais ou menos como o apoio alucinado do mosquito ao elefante.
Hoje a cultura produzida e refletida pelos meios de comunicação na mão de grupos particulares, ligada aos índices comerciais de audiência, estabelece necessariamente, para sua própria sobrevivência, um verdadeiro confronto entre quantidade e qualidade. O que não significa que qualidade seja atributo central e quantidade, periférico, até porque qualidade existe em qualquer lugar.
Um dos grandes problemas da cultura contemporânea foi ter posto em dúvida a necessidade de se pensar em qualidade/valor, como se fossem elementos elitistas, reacionários, da mesma maneira que outros só conseguem ver a qualidade através da quantidade. Tipo: se Paulo Coelho vende horrores, então é um escritor genial!!
De maneira que constatamos, neste momento, o que chamam de pós-modernidade, a convivência de sentimentos ambíguos: o sentimento de hipercarnavalização e o sentimento de anomia. No plano material, a hipercarnavalização se define como ausência de limites éticos, estéticos e sociais nos costumes e modas, típica do narcisismo ingênuo e, ao mesmo tempo, selvagem, egoísta, anti-social.
Já no plano mental, conceitual-artístico, a ênfase está na anomia – ausência de regras e normas éticas e estéticas, validando qualquer tipo de “intervenção-instalação-ocupação”, glamourizando a marginalidade, a cultura periférica, de Fernandinho Beira-Mar a Marcola.
Mas de modo geral vive-se apenas da aparência, vive-se apocalipticamente o momento presente, sem qualquer projeto comunitário.
Essencialmente, a miséria, a exclusão, a falta de cidadania prosseguem inalteradas e quanto à classe média, da pequena burguesia para cima, todos têm horror à proletarização, o que mais temem é um retorno a essa condição.
Incluindo eu, incluindo você.
E Lula, naturalmente.
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