Márcia Denser*
“Das ONGs” lembra título alemão, mas longe de mim porquanto continuo a copiar Emir Sader¹ quando este faz a crítica da “autonomia dos movimentos sociais” – uma posição que se tornou não um reagrupamento da força de massas para organizar novas formas de ação política, não um caminho de construção de alguma alternativa de poder, mas uma negação de encarar o tema do poder, uma renúncia à disputa pela hegemonia. Representou mais um retrocesso – entre tantos – porque o abandono da esfera política é o abandono da luta pelo poder.
Tais concepções se expressam nos livros de Toni Negri e John Holloway, nos quais abandona-se explicitamente a luta pelo poder e pela hegemonia que “corromperia a tudo com suas formas de representação política da vontade popular”. Para Negri, o Estado é caracterizado como instância conservadora diante da globalização. Contudo este teoriza abstratamente e encalha na inércia da autonomia social. Na prática, acabam todos reféns do campo teórico instaurado pelo neoliberalismo, aquele articulado em torno do eixo público-privado, entre Estado e sociedade civil. Mas a proposta neoliberal encobre na categoria “privado” os elementos mais esdrúxulos, sejam sindicatos, bancos, escolas de samba, ONGs, traficantes, um verdadeiro samba do crioulo doido.
A esfera privada não é a que caracteriza a proposta neoliberal. Esta pretende tirar poder e recursos do Estado não para transferi-los para os indivíduos, mas para jogá-los no mercado. Quando uma empresa é privatizada não são os trabalhadores que dela se apropriam, mas é o mercado que resgata a empresa, conforme o maior poder financeiro de cada conglomerado econômico em disputa.
Essencialmente, a esfera hegemônica no neoliberalismo é a esfera mercantil, o processo de mercantilização que transforma todos os bens em mercadorias com preço no mercado, onde tudo se vende e tudo se compra. Em sua fase mais recente, depois das conquistas do Estado de bem-estar social, passa a ser mercadoria o que fora assumido anteriormente como direito – educação, saúde, saneamento básico –, torna-se um bem negociável.
A contrapartida ao neoliberalismo não é o Estado. Porque o Estado não define por si só a própria natureza, uma vez que pode ser um Estado socialista, fascista, liberal ou totalitário. É antes um espaço de disputa sobre suas determinações. No neoliberalismo é um Estado mercantilizado, financeirizado, que arrecada recursos no setor produtivo e os transfere, em grande medida, para o capital financeiro através do pagamento das dúvidas. Como também pode ser um Estado refundado por governos que buscam a superação do neoliberalismo, constituindo novas estruturas de poder. O Estado constitui-se assim num espaço de disputas.
A propósito também Mike Davis em Planeta Favela (S.Paulo, Boitempo, 2006) argumenta que a principal causa do aumento da pobreza e da desigualdade nas décadas de 1980 e 1990 foi a retirada do Estado. Além das reduções diretas impostas pelos Planos de Ajuste Estrutural-PAE (por sua vez impostos pelo FMI e Banco Mundial como precondição dos empréstimos aos países) aos gastos e à propriedade do setor público, os autores da ONU destacam a diminuição mais sutil da capacidade do Estado que resultou da “subsidiaridade” – definida como descentralização do poder soberano pelos escalões mais baixos do governo e principalmente entre as ONGS ligadas diretamente às principais entidades de auxílio internacional. Toda estrutura aparentemente descentralizada é estranha à noção de governo representativo nacional, que tão bem serviu ao mundo desenvolvido, sendo ao mesmo tempo bastante submissa ao funcionamento duma hegemonia global. O ponto de vista de Washington torna-se então o paradigma do desenvolvimento, de forma a unificar rapidamente o mundo todo no sentido geral daquilo que as organizações internacionais apóiam.
Desde os anos 1990, o Banco Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e outras instituições de ajuda contornaram ou evitaram progressivamente os governos nacionais para trabalhar de forma direta com as ONGs regionais e comunitárias. Na verdade, a instauração das ONGs – há milhares delas nas cidades da América Latina, África, Índia e Ásia – reconfigurou a paisagem do auxílio ao desenvolvimento urbano. Enquanto o papel do Estado como intermediário diminuía, as instituições internacionais se instalaram na base através das ONGs em milhares de favelas e comunidades urbanas pobres. A título de exemplo, a Fundação Ford trabalha por meio de uma ONG importante que, por sua vez, dá consultoria a uma ONG local.
Ainda segundo Davis, as ONGs do Terceiro Mundo “mostraram-se brilhantes na cooptação dos líderes locais, assim como na conquista da hegemonia do espaço social tradicionalmente ocupado pela esquerda. O maior impacto delas se fez sentir no fato de burocratizar e esvaziar os movimentos sociais urbanos. A profissionalização das ONGs tende a diminuir a característica de mobilização do ativismo de base, enquanto cria uma nova forma de clientelismo”. (Planeta Favela, pgs. 83-86).
Na obra citada, um ativista de Mumbai interfere com uma crítica ainda mais dura: “A atividade constante de certas ONG é subverter, desinformar e desidealizar as pessoas, de modo a mantê-las afastadas das lutas de classe. Propagam a prática de pedir favores com base na solidariedade, em vez de tornar os oprimidos conscientes dos seus direitos. A sua atividade visa desviar a atenção dos males políticos maiores do imperialismo (leia-se “globalização”) para questões apenas locais e confundir a todos na hora de distinguir amigos de inimigos”. As ONGs são intermediárias de uma “nova classe” que, com a benção de doadores estrangeiros, desviam e sublimam a raiva política, garantindo que não chegará ao ponto de explodir.
Voltando, Sader aponta o pólo oposto à esfera mercantil como a esfera pública, constituída em torno dos direitos e de sua universalização, o que implica num profundo e extenso processo de desmercantilização das relações sociais. Democratizar significa desmercantilizar, tirar da esfera do mercado para transferir para esfera pública os direitos essenciais à cidadania. Substituir o consumidor pelo cidadão.
E finalizo com Paulo Arantes para quem “com ou sem globalização, a independência dos movimentos sociais sempre foi muito relativa, por maior que seja o cuidado com sua autonomia política e ideológica. Com ou sem PT, continuarão batendo à porta do Estado, com maior ou menor força, dependendo do poder de dano dos sem-poder. Quando o real poder de veto da antiga classe operária se derrete ao sol do novo capitalismo, alastra-se pelo conjunto da população um sentimento impotência que ainda não encontrou tradução política.”² Nem sujeito histórico.
Existe algo como um agravamento do cinismo de massa no país. Que obviamente não é de hoje. Para não remontar à noite dos tempos, pode-se dizer que o novo ciclo de corrosão do caráter nacional tenha sido inaugurado pela crapulização dos ricos e famosos durante o efêmero reinado Collor, ao qual se acrescentou o glamour da era tucana, conferindo brilho intelectual e verniz sociológico à adaptação predadora à nova ordem econômica – eis alguns ingredientes explosivos quando se pensa no sentimento cínico do mundo que nos restou.
Enfim, os caminhos da reinvenção política parecem tão inexcrutáveis quanto os desígnios do Deus que descartamos.
¹ SADER, Emir. A nova toupeira. São Paulo, Boitempo, 2009.
² In Extinção:pgs. 258-259. São Paulo, Boitempo, 2007
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