Conforme prometi na crônica da semana passada, contarei a história da tal Corrida de Aventuras. E – como dizem por aí – vou tentar contextualizar a bagaça.
Quem me convidou para “cobrir o evento” foi um sujeito chamado RB. Claro que não vou dar a colher de chá e dizer o nome e o sobrenome dele aqui, no meu quintal. Basta dizer que ele é sintoma e encarnação de uma época deslumbrada e equivocada da minha vida. Ainda bem que passou.
Eu lembro. Num mesmo bar – dividindo o mesmo metro quadrado – conviviam alegremente novos Machados, novos Gracilianos, Rosas e Clarices, gente ungida. Para essa gente pouco importava o fato de que em cem anos o Brasil produziu apenas um Dom Casmurro. Que se danasse a contabilidade do tempo. Nem a lei da gravidade valia grande coisa, dane-se o arroz com feijão: se tínhamos uisquinho, sexo, cocaína e a celebração do fato consumado, para que juntar uma idéia com a outra e chegar a algum lugar?
Um lugar que foi conquistado porque efetivamente não existia. Ou estava vazio. A década de oitenta havia sido um deserto de esoterismos e vitórias do Ayrton Senna, as pessoas começavam a consumir e acreditar nas picaretagens do Paulo Coelho; e poetinhas meia-bomba pagavam pau para uma MPB que os incorporava e desprezava. Arnaldo Antunes era um gênio, coisas assim.
Creio que os anos noventa refletiram essa ressaca criativa agravada pela broxada pós-collor e pelos livros do dr. Lair Ribeiro; ou seja, ninguém pensava nem reagia, de modo que bastaria ocupar um deserto com qualquer outro deserto, e foi isso o que aconteceu: irrompeu a geração 90, e ocupamos – entrei de mané, admito – esse limbo.
No começo dos 00, a praia de RB não era, digamos, a “realidade da periferia” – que três anos depois, aliás, daria seus primeiros gritos furiosos em direção… ao colinho das madames da Flip e à redação de revistas modernas e revolucionárias do naipe da Trip e Rolling Stone.
Um minuto, estou tendo uma crise de risos.
Prosseguindo. RB, ou Ronaldo Belzebu, optou pela esquisitice e pelas penumbras, de onde vem o apelido evidente. Ele e uma legião de feios, sujos e malvados.
Hoje, depois de dez anos, todos estão muito bem colocados: RB é editor de uma das revistas supracitadas que, entre outras “revoluções”, costuma censurar o texto dos colaboradores sem avisá-los. Aconteceu comigo no Festival de Gramado. Os outros retirantes, sujos e malvados também arrumaram seus lugarzinhos. Uns dão aulas e cursos de “redação criativa” para madames desocupadas, outros vivem de traduzir gibis e de assessorias de imprensa; a picaretagem campeia e a literatura virou sinopse, agoniza em travellings, fade in, fade out. Se um livro não for a promessa de um filme (isto é: se não se reduzir a ação e diálogos), simplesmente não existe.
Uma fatura que aponta para a limitação. Triste isso. Triste essa gente que não pulsa, mas despacha: uma mistura de mafiosos mirins com burocratas descolados. Aqueles que não arrumam uma sinopse, quebram o galho com editais, fomentos, bolsas, Lei Rouanet e pequenezas ilustradas, enfim, todos eles ganham suas minúsculas vidinhas às custas de pequenos golpes, afagos e “expedientes culturais”; viajam ao redor do mundo e desfilam seus premiados umbiguinhos diante de uma platéia cada vez mais burra e complacente.
Quero dizer que todos esses “transgressores”, digo, despachantes, hoje, estão devidamente instalados e a “arte” deles alcançou o objetivo proposto: virou holerite. Alguns diriam: esse Mirisola é ressentido. Eu responderia a essa bobagem com uma pergunta: e os desdobramentos de tudo isso? Se estou exagerando, mostrem-me os livros geniais que prometeram há dez anos. Cadê?
Eu escrevi os meus.
Muita gente embarcou nessa canoa furada. Digamos que a “literatura” de Ronaldo Belzebu (o mesmo raciocínio serve para os outros) se resumia a despejar um monte de esquisitices & bizarrias de forma desordenada em objetos de formato não necessariamente retangulares que – eventualmente – poderíamos chamar de “livros”: o fdp era notadamente ilegível e recorria a gramatiquices para achar pelos em meus ovos ( nem é preciso dizer que eu era a bola da vez…); não bastasse, quando o conheci, RB era dono de um Alfa-Romeo Ti4 ano 82 e usava boinas à Guevara.
O cardápio das arapucas para me ferrar era variado. Desde macumbas toscas na Mercearia São Pedro (chegou a furar meus olhos numa foto de jornal) até arrumar viagens mirabolantes a fim de planejar meu extermínio, como essa “Corrida de Aventuras”.
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Não é difícil para mim lembrar daquele nematóide encostado nos balcões da Vila Madalena. Sua tática consistia em se infiltrar entre meus amigos, com sua famigerada cultura pop, para me elogiar, angariar simpatias e vender seu peixe podre. Lembro da nossa primeira conversa. Ano 2000.
Lançamento do Herói devolvido. Tava cheio de “RBs” por lá. Nenhum mais filho da puta que ele. O canalha me abordou, e falou isso:
– Você é o cara.
Poxa,eu era “o cara”. Nunca nenhum puxa-saco em momentos de febre alta havia me dito nada parecido. Acreditei no canalha (mesmo porque era verdade…).
Em princípio, Ronaldo Belzebu não se identificou como “escritor”. Apresentou-se como jornalista, e adiantou que queria fazer uma matéria comigo. Foi a primeira caveirada que armou.
Paguei um mico do qual até hoje não me recuperei. Ele me convenceu a posar para uma foto de smoking na praia ladeado de belas garotas. O desgraçado convence. E aí intitulou a matéria de “A vingança do nerd”. Canalhice pura.
Quando eu escrevia crônicas na AOL, Ronaldo Belzebu vivia me mandando emails inteligentes e bem-humorados a fim de corrigir minúsculos erros gramaticais.
Os pigmeus, aliás, adoram trocar emails inteligentes e achar incorreções no texto dos outros; é um procedimento “típico”: deviam reservar um outubro do ano para celebrar a Oktoberfest gramatical. O tesão sintático no cu desses vermes (leia-se imparcialidade pra boi dormir) chega a ser redundante. Da minha parte – diferentemente deles, porque sou escritor – não tenho problema algum em eleger inimigos por ignorância declarada.
Por dois motivos relativamente simples: em primeiro lugar, já passei da fase de disputar um lugar ao sol e, depois, não pretendo reafirmar o óbvio: isto é, não preciso, e nem jamais precisei, me esconder da minha ficção. Tenho bala na agulha, porra.
Mas eu falava das sutilezas de RB. O sacana, além de jogar sinuca com meus amigos, garante que gosta dos meus livros. Eu não consigo acreditar. Maledicente, destrutivo e moderninho, certa vez cismou com a roupa que eu usava. O tipo de preocupação que só poderia vir de alguém que, por eliminação, uma vez que não tem talento para escrever, ocupa-se de eventos, boinas, cachecóis e penduricalhos para desfilar de escritor por aí.
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O pior de tudo foi quando Ronaldo Belzebu tramou minha ida para Santarém. Dessa vez, porém, eu sabia qual era a dele.
O nome da caveirada era “Corrida de Aventuras”.
Consistia nuns retardados descendo corredeiras, se dependurando em cordas, arriscando o pescoço e, em suma, uns comendo a bunda dos outros e todos consumindo muita granola e açaí. No meio da selva amazônica. Eu ia cobrir “o evento” para a revista descolada da qual RB é editor. Aliás, essa revista, a Trip – repito – tem mania de tesourar o texto dos colaboradores sem consultá-los. Não me conformo. Mas foi uma única e última vez.
Vamos em frente.
Uma semana. Mil reais num hotel cinco estrelas em Santarém, e negócio fechado. Do meu quarto mesmo, com o ar-condicionado ligado no máximo, em uma tarde e com algumas informações do local e dados complementares dos concorrentes, latitude, longitude, bom uísque e algumas fotos para ilustrar a babaquice,e pronto. Estaria tudo resolvido.
Aí me liga o sujeito da organização.
– Uhhuuuu!! Saudações. Você é o jornalista?
– Escritor.
– Já providenciou a vacina e os equipamentos?
– Com quem o senhor quer falar?
– Mosquiteiro, o speling, os protetores de pele, repelente…
– Quem te deu meu telefone?
– Roupa especial, ressuscitador, ganchos… o RB da Trip, tá ligado?
– Vou falar com ele. Tchau.
Aquela história de “ressuscitador” havia me intrigado. Ronaldo Belzebu me garantiu que eu só precisaria me deslocar do hotel para “a selva” uma única vez… “pra conhecer o campo de provas”. Uma passadinha lá, e tudo bem.
Eu disse que nem fodendo. Ele insistiu e disse que não ia me custar nada,e blábláblá e blábláblá… e o filho da puta do RB acabou me convencendo. Uma passadinha no local também não ia me arrancar nenhum pedaço. Ainda assim, resolvi ligar para o débil mental da organização.
– Alô,é o débil mental da organização?
– Uhuuuu!! Saudações. Tem uma semana para tomar a vacina.
– Que cazzo de vacina?
– Uhuuu!!! O acampamento…
Descobri que eu ia acampar na selva. O hotel era apenas o ponto de partida. Do hotel, “a galera” (eu incluído) desceria o Solimões, e a partir daí era cada um por si. A maior parte do tempo debaixo d’água. Malária, índios canibais, sucuris gigantescas, jacarés e o cardápio para acabar comigo era extenso e variado.
Se eu não tivesse insistido com o retardado da organização, uhuuhuu!!!! provavelmente Ronaldo Belzebu teria conseguido me eliminar.
Eu sei que ele não vai desistir. E quero dizer que tenho tudo inventariado, e a cada baixa que eu sofrer aqui desse lado da trincheira, pretendo contra-atacar com intensidade proporcional, ou melhor, desproporcional, me aguardem.
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