João Vieira*
A grita do venerado senador Pedro Simon (PMDB-RS) ante o descalabro da corrupção no seio da cúpula governamental levou-me à troca idéias com Pedro Paulo Lomba, a quem coube “desenhar” o mítico projeto da Universidade da Selva, em Mato Grosso, para esclarecer a extensão do apequenamento dos quadros dirigentes do país.
Criativo, disse-me ser conseqüência da transformação do consumismo num sistema ideológico; e assim foi assimilado pela consciência pública não como uma simples aspiração do bem-viver, mas como a própria redenção social; meta a ser atingida a qualquer preço no curso da existência.
Do consumismo, enfim, como uma ideologia ou razão prática de ser e a cuja concretização são consagrados o melhor e o máximo dos esforços e propósitos… Vale conferir a lúcida observação na transcrição, em arranjo, a seguir:
“O consumismo tornou-se uma ideologia disseminada por empresas comerciais e toda corrupção pública, e privada, está aprovada nesta ideologia. É inviável para o homem público não carregar as marcas do sucesso pessoal. A família consumista exige isso na competição social com as outras famílias.
Nunca vi uma sogra que não gostasse de um genro corrupto, que dá conforto à filha e aos netos, e por tabela a ela própria, roubando dinheiro destinado ao tratamento do câncer infantil. E o consumismo atingiu em cheio a classe C, e tornou-se símbolo da ascensão social. Todo barraco da favela da Rocinha tem todos os mais modernos eletrodomésticos. As pessoas passaram a morar dentro da televisão, que ocupa 1/3 da parede da sala. Mata-se para roubar um tênis de marca.
Não pretendo ver a queda do consumismo na minha vida. Mas vi a queda do socialismo soviético provocada pelo consumismo. Acho que o aquecimento global tem o grande mérito de combater a poluição gerada pelo consumismo. Hoje, nas margens do Rio Madeira, árvores altas exibem garrafas pet presas nos galhos durante a cheia. Observe toda a mecânica ideológica exibida pelo consumismo: sistemas de interpretação da realidade, roteiros de reconhecimento e de aquisição, palavras de ordem! E se conhece bem a origem disso tudo: a passagem do artesanato para a indústria.
O primeiro lugar no mundo ocidental em que se podia encontrar os mesmos bens, pelo mesmo preço, em qualquer época do ano (contrariando as práticas do artesanato) foi Au Bon Marché em Paris, inaugurado em 1852. Até então não havia bens triviais disponíveis para todas as pessoas. Lembre-se das pequenas heranças femininas que passavam de bisavós, a avós, filhas e netas: um jogo de copos de cristal, uma sopeira de porcelana, castiçais, um aparelho de jantar, toalhas de mesa, móveis – que eram motivo de disputas e intrigas.
Na segunda de metade do século 20, inaugurou-se a era em que as pessoas poderiam ter as coisas triviais sem esperar heranças e doações. Vieram as lojas de departamento americanas e o crediário, essenciais à máquina social e econômica do consumismo.
Consumir deixou de ser privilégio, tornou-se direito, e agora é obrigação social. As pessoas atualizadas, diferentes das do passado não consumista, são construídas de fora para dentro. Fomos a última geração construída de dentro para fora, armazenando valores como fonte de energia pessoal. Só esqueceram de distribuir renda para todos poderem consumir.
Os brasileiros são conhecidos no comércio americano e europeu como um povo cleptomaníaco. Roubam lojas na maior cara de pau e se sentem bem. Veja o honrado rabino Sobel e suas seis gravatas furtadas nos Estados Unidos. É um povo criado desde os anos 1960 – em criatórios de mídia, propaganda & marketing – para consumir, mas que não tem grana. Pendura-se todo em todas as prestações e, quando não estão olhando, furta. Pelas vias do desenvolvimento, essa situação demorará muito para ser consertada e causará enorme prejuízo. Para reduzir, o instrumento educacional é incerto, lento, pouco produtivo. O Instrumento mais eficaz é a Justiça: cadeia pura e simples no fim da linha.
Observei nos Estados Unidos que por lá a sogra não gosta de genro corrupto, porque ele tem chance de ser apanhado, ir para a cadeia, e deixar a família desprotegida e socialmente desmoralizada. A sogra americana aprendeu que a corrupção do genro pode significar a desgraça da filha e dos netos. É o caminho.
Em maior profundidade: a natureza, onde todos roubam todos, foi e continua sendo a mentora do povo brasileiro. Era isso que os ecologistas queriam: aí está”.
E o fecho magistral: “O consumismo não corresponde exatamente ao capitalismo ideológico, que privilegia a poupança – ("se quer enriquecer, controle seus desejos"). O consumismo contraria, por exemplo, a Kabala do Dinheiro, judaica” – conclui.
P.S: Vale trazer à lembrança de Padre Antonio Vieira com sua obra clássica Os Sermões, onde consta Sermão do Bom Ladrão. E por oportuno, o apócrifo Arte de Furtar, que chegou a ter a autoria atribuída também ao Pe. Vieira e que esquadrinha à exaustão, mas com engenho e graça, ou se quiser, ironia, tão insólito quanto carvernoso “dom” de nossa raça.
* João Vieira, sociólogo e professor universitário, foi diretor do Museu Rondon, da Universidade Federal do Mato Grosso.
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