Márcia Denser*
Sempre que preciso escrever sobre esse pós-feminismo neoconservador (argh!) da atualidade, vejo Condolezza Rice como mulher-símbolo do Zeitgeist: aquela criatura pós-catastrófica capaz de cometer qualquer tipo de traição – contra o gênero (feminino), contra a raça (negra), contra a espécie humana – qualquer um.
Existe pretexto ou justificativa para essa cadeia de traições? Às quais já nos acostumamos, basta espiar as manchetes dos jornalões, Veja, Manhattan Conection, à sessão da tarde na HBO, Luciana Gimenez. Quer dizer, já conseguimos fazê-lo sem vomitar, o ser humano tem uma extraordinária capacidade de deglutição.
Em artigo recente, Maria Rita Kehl (“O que pode uma mulher?”) discutindo as relações entre mulheres e poder, lembra que só na América do Sul hoje temos duas presidentes mulheres, Michelle Bachelet no Chile e Cristina Fernández de Kirchner na Argentina. Contudo, mulheres no poder não constituem uma novidade tão espantosa, diz ela, citando a rainha Vitória, Catarina de Médicis, Isabel de Castela.
Entre as quais incluo Elizabeth I da Inglaterra, a mais famosa, até porque o departamento de relações públicas dos anglo-saxões é eficientíssimo. No século XX tivemos Indira Ghandi, Golda Meir e, naturalmente, Margareth Thatcher, a lady de ferro. Durante a Guerra das Malvinas, os cordelistas do Nordeste em seus repentismos inferiram acertadamente ao chamá-la de “nova Lilith”.
O poder é um lugar que tolera excentricidades, desde que não alterem seu funcionamento e os compromissos que o sustentam, observa Maria Rita, mas mulheres no poder não garantem políticas mais justas e humanitárias, como se imaginou em 60, época do alto feminismo heróico, até porque elas podem ser tão truculentas e injustas quanto os homens. “Condolezza Rice não pratica as políticas dos sonhos dos movimentos feministas. Nem dos movimentos negros. Se o feminismo lutou pelo reconhecimento de que a diferença entre os sexos não implica em diferenças de talento e competência, temos que admitir que também não garante diferenças éticas”.
Mas o número reduzido dessas mulheres em posições de poder interessa menos do que o percurso de milhões de mulheres anônimas. Kehl considera que o início deste deslocamento empreendido pelas mulheres em direção ao território ocupado pelo homem foi registrado por Virgínia Woolf em seu diário: ela escreveu que na Inglaterra da década de 20 a humanidade estava se transformando, ou pelo menos 50% dela, ou seja, as mulheres. Ocorre que os 50% de mulheres não se moveram de seus lugares tradicionais sem abalar a suposta identidade da outra metade. Até meados do século XIX, a divisão era clara: os homens ocupavam a vida pública e as mulheres tratavam da vida privada: “Privada de quê? De visibilidade, diria Hanna Arendt. De visibilidade pública”.
Se visibilidade nunca faltou ao corpo feminino, a verdade é que até o século XX as mulheres estiveram privadas não da imagem pública mas da palavra. A palavra feminina, reservada ao espaço doméstico, não produzia diferença na vida social. O filósofo Bento Prado sugeriu que a inexistência de um significante que represente, no inconsciente, o conjunto de mulheres, deve-se ao fato de as mulheres, durante séculos, não terem inscrito sua experiência no campo da cultura. Foram objetos do discurso do homem, não sujeitos de um discurso próprio.”
Repasso essas considerações de Maria Rita, com as quais concordo inteiramente, chegando à mesma conclusão que Bento Prado em ensaio escrito (ainda inédito) sobre o discurso feminino na literatura pós 80, cujas idéias principais exponho adiante:
A escritora transgride a separação tácita existente entre esfera pública e privada, transformando-se ela própria, a mulher que publica, em “mulher pública”, quer dizer, a prostituta, que é a mulher pública por excelência – historicamente qualquer mulher que ousasse agir em público, arriscava-se a ser identificada como tal.
Criticamente, havia um acordo tácito de que certas palavras, certos temas estariam interditos às mulheres, devendo as questões do corpo e da sexualidade ser tratadas de uma forma esfriada ou cerebral, independente da qualidade do trabalho. Ou seja, está tudo bem, contanto que você escreva “de fora”, como homem. Ficcionistas e poetas que rompessem este acordo colocavam-se como transgressoras, apropriando-se de um discurso visto como prerrogativa masculina.
Quanto a mim, o fazer literário é algo construído no cotidiano, constituindo-se o viver e o escrever uma só e a mesma coisa, não mais a vivência metafísica consumada apenas no plano subjetivo clariceano, e muito além duma subliteratura Carraro/Cassandra. Minha personagem age, toma a iniciativa, ela usa, não é usada pelo outro, desse modo opera a subversão do sistema de gêneros dominante e assim coloca a mulher como sujeito da ação, e não como objeto do outro, cancelando o papel de mulher-objeto.
E este cancelamento é uma conquista levada a efeito no interior da batalha discursiva. Em função duma elaboração da linguagem como fenômeno estético, duma consciência plena da língua e da linguagem como instrumento de trabalho, minha personagem não é falada pela língua, não vincula o discurso do outro, ao contrário, desloca o discurso da tradição, do poder constituído, para colocar o seu próprio, conquistando o direito à própria voz, à própria fala.
E quem detém a palavra, detém o poder.
Assim, Condolezza Rice é extremamente poderosa, porque a serviço do poder norte-americano, mas uma vez que faz o discurso do poder, é falada pela língua do dominador, não é autora do próprio discurso e, neste caso, permanece rigorosamente muda. Naturalmente isso também serve para o homem. Mas é uma outra história que fica para uma outra vez.
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