Márcia Denser*
Listas, classificações, relações de nomes, coisas e pessoas nos atraem sempre e irresistivelmente. A propósito, José Luís Fiori compara uma “classificação de animais” de Jorge Luís Borges com as inúmeras e confusas “classificações da esquerda” que os conservadores fazem atualmente na América Latina.
A classificação de animais o filósofo Michel Foucault (“As Palavras e as Coisas”) atribui um tanto inocentemente a uma enciclopédia chinesa descoberta por Borges, como se não soubesse que El Brujo oculta suas próprias ficções por detrás de livros e autores apócrifos, isto é, que também são outras ficções.
A lista é muito engraçada, pois os animais se dividiriam em:
A. Pertencentes ao imperador; B. Embalsamados; C. Domesticados; D. Leitões; E. Sereias; F. Fabulosos; G. Cães em liberdade; H. Que se agitam como loucos; I. Inumeráveis; J. Que acabam de quebrar o vaso; K. Que de longe parecem moscas; L. Et cetera; M. Incluídos na presente classificação; N. Desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo.
Fiori lembra que, durante a Guerra Fria, a esquerda era considerada uma força política coesa e uma ameaça homogênea, mas agora pespegam-lhe tantas divisões que lembram os animais chineses de Borges. Antigamente, só se distinguiam os “normais” e “equilibrados” dos nacionalistas e populistas, mas hoje eles são múltiplos:
A. Esquerdistas moderados; B. Radicais; C. Do bem; D. Do mal; E. Demagógicos; F. Refundacionistas; G. Etno-sociais; H. Modernos; I. Anarco-triunfalistas (que botei no lugar dos Espalhafatosos de Fiori); J. Anacrônicos; K. Autoritários; L. Pós-modernos M. Nacional-populares; N. Pragmáticos; O. Nacional-desenvolvimentistas; P. Raivosos; Q. Narcísicos; R. Histriônicos; S. Pré-históricos; T. Nazi-fascistas.
Quanto à classificação da “enciclopédia chinesa”, a confusão é naturalmente atribuída aos erros duma Biologia que engatinhava ao lado da Mitologia, sem contar que a ficção borgiana é tão rigorosamente verossímil que é citada até por Michel Foucault como verdade e Fiori por tabela, mas a vitória eleitoral da esquerda na América Latina parece ter pouco a ver com a Ciência Política.
É natural que muitos não gostem do que está acontecendo, mas o que surpreende nesse momento político não é a imprecisão das idéias e dos projetos imediatos dos governos eleitos, mas sua unidade em torno de um único objetivo central: mudar definitivamente o rumo elitista, racista e subalterno da história latino-americana.
Imprevisível para os cientistas políticos foi a “restauração liberal-conservadora” dos mercados auto-regulados, ocorrida depois de 1980, mas no início do século XXI, duas décadas e meia depois, multiplicam-se os sinais de uma “nova transformação”, nacional e social, e está começando pela América Latina graças à globalização, na forma de um gigantesco movimento democrático a favor de mais justiça na distribuição nacional e internacional dos direitos, do poder e da riqueza.
Gostaria também de lembrar que, quando um poder hegemônico sente seu domínio ameaçado – como é o caso do atual neoliberalismo fundamentalista texano-americano – o primeiro passo é instalar a confusão entre os homens, daí a multiplicação retórica dos nomes do inimigo. Babel rides again.
Deixe um comentário