Marcelo Mirisola*
São Paulo, 1º de junho de 2008
Caro amigo,
Aquela tarde no Jardim Casqueiro realmente não foi um constrangimento apenas para você. Além de quase ter sido linchado por conta da falta de senso de humor dos manos locais, eu tive que dar um balão no motorista da Viação Ultra, e ainda por cima perdi meu DVD das Brasileirinhas. O DVD da Leila Lopes!
Meu caro Dostoiévski do Jardim Casqueiro:
Não existem autores
Pois então, meu caro Dostoiévski , aqui vai um aviso: o Jardim Casqueiro é apenas o prenúncio de um mundinho do qual eu queria me excluir. Infelizmente não consegui. Desejo melhor sorte para você, mas acho difícil. Pelo que conheço dos seus livros, e de suas necessidades, creio que vai fracassar.
Você é um sujeito amargo, doente e desagradável. Deve sofrer do fígado. Por que insiste nessa bobagem? Ah, meu caro. Você sabe que os manos aí do Casqueiro jamais entenderão os seus personagens inventados. Eles não entendem uma piada! Tudo o que é diferente da realidade lacrimosa e sanguinolenta deles não existe: para a “facção do bermudões”, o real é o fantástico, e não o contrário. Se liga!
Claro, o acostamento é o seu mundo, eu compreendo. Você teria de convencê-los. O problema é que você não quer negociar nem com os playboys, e nem com os seus irmãozinhos. Aí fica difícil, né? Como é que você vai sobreviver se não sabe fazer trocadilhos, e é um fiasco com as rimas? Em que mundo pensa que vive, rapaz?
Quer saber? Pois eu lhe digo. Um mundinho feito de conchavos, e acordos. Quando você escreve não pensa num filme? Assim não dá. Em vez de insistir com essa bobagem de Irmãos Karamazov, devia pensar em algo mais elaborado, tipo… o Rap do Teletubie.
Para mim é muito difícil dizer isso, mas não tem jeito. Vamos lá, prepare a bílis. Você tem que “dialogar” com as outras artes. In-te-ra-gir, compreende? Aqui as famílias são unidas. Quer um conselho? Enfia os Karamazov no rabo, não mostra para ninguém. O talento é imperdoável. Ou você tem vocação para costureiro, relações públicas, releases, resumos e tapinhas nas costas… ou você está morto. A liberdade consiste em ser escolhido, jamais em escolher.
O prejuízo, portanto, é todo seu, meu caro.
Esqueça a literatura, e pense nas viagens e nas palestras remuneradas. Sexo. Negócios, frugalidade. Os amigos existem para isso. Um monte de amigos, e um monte de editais. Bolsas, prêmios à mancheia. Em vez de ficar remoendo esse rancor, você poderia se dar muito bem. Mas você prefere o Jardim Casqueiro a uma história de amor
Um mundo abjeto sim, e escroto. Contudo, não dá simplesmente para dizer “não é o seu mundo”. Muito pelo contrário. Você nem sequer poderia descartá-lo. Não é a lama sua matéria-prima? Eu sei que é.
Desculpe a brincadeira, mas a parte que lhe cabe nessa lama… é um cesto. De caranguejos!
Onde você foi parar? Deve ser difícil ter de vender caranguejos no acostamento da Imigrantes para sobreviver. Deve ser nojento. Eu tô ligado, mano. E é por causa dessa lama, desconfio, que compartilhamos alguma afinidade. Portanto, me escuta. O que é minúsculo, sórdido, mesquinho e humano me interessa. E, creio, deva lhe interessar, acho que sim.
Para sua informação, existe um Aleph nesse esgoto. A confluência de todas as pequenezas numa só. Vamos imaginar um ser genérico. Bíblico. Que existe, existiu e existirá em todas as épocas. Pois bem, em 1949 Jorge Luis Borges (já ouviu falar desse argentino?) o descobriu no vão de uma escada, num porão da calle Garay. Antes de Borges, o Aleph tinha lá seu encanto e austeridade. Vivia sua vidinha reclusa, e grandiosa.
O problema é que foi nomeado. Como era o infinito em um só, e era muitos e todos de uma só vez, aproveitou-se da suposta cegueira do argentino, e deu o pinote. Perdeu o pudor, e ganhou as ruas. Caiu na gandaia. E, claro, degenerou-se.
Virou arroz-de-festa, ostenta o ir e o vir. Tem nome e sobrenome, dá workshops, e arrumou um namorado que é garçom de uma pizzaria na Vila Madalena. Inverteu a própria equação. O Aleph virou Carmem Miranda.
A fim de facilitar as coisas, meu caro Dodô do Jardim Casqueiro, desconsideraremos o Plural. Creio que é conveniente darmos um novo nome ao Aleph. Vamos tropicalizá-lo, simplificar a coisa. A partir desse momento, o Aleph do esgoto passa a se chamar Pavão Cabeçudo.
Tá bom assim? Ele é um avanço tecnológico da canalha, da abjeção. Mais do que um sintoma, ele é uma continuidade. Ele é o Chalaça pós-moderno e o eterno conselheiro Acácio, o professor Unrat (tradução: lixo), o traficante colombiano, o gigolô que assoprava nos ouvidos da meretriz apaixonada “só casando, Herculano”, ele é o resumo da escória, o diabo em estado de degenerescência, e o pior: não exige prática nem habilidade. É simplório, encantador e divertido, não, não, ele não é um filho da puta.
Um filho da puta não tem nuances. Não tem o charme do Pavão Cabeçudo, nem o magnetismo. Não vou dizer que ele é admirável. Quase. Tem lá sua graça, e as platéias que lhe convém. Eu mesmo já lhe servi de orelha e claque – inúmeras vezes. Não reconhecê-lo em seu pavonear seria um erro mortal. Ele é o gênio da agenda.
Afável, ele (que é todos em um só) sabe localizar e chamar para si a qualidade do(s) outro(s). Por conta disso, sempre arruma um caráter para sair à noite… ou ir à feirinha da USP. Sempre dá um jeito – como se combinasse a roupa – para que esse “caráter” não desagrade aos interesses da companhia de ocasião, ou a platéia da vez.
Ele é premeditado, e jamais se mete em encrencas, estuda o terreno e sempre tem uma palavra de conforto a quem lhe pede socorro. Uma antologia no bolso do colete. O escaninho certo na hora adequada. O Pavão cabeçudo é o senhor das facilidades e o mestre do improviso, e “os eventos” acontecem aparentemente na base da casualidade. Mas não se engane, não existe “casualidade” nem gratuidade nesse jogo. A rinha é violenta, e a disputa não é para amadores. Atente para essa palavra: “casualidade”. O dia que você deixar essa carranca de lado, e for comigo à Vila Madalena, vai entender o que eu falo. A decoração nos barzinhos que ele freqüenta é assim, “casual” – porém só na aparência. Tudo é decoração. Tudo é premeditado para que as pregas afrouxem e a fatura seja devidamente cobrada na hora da saída, entende?
Como é que é? Um livro chamado “Crime e Castigo”? Não, acho que não: ninguém vai se interessar. Esse negócio de claustrofobia,de autismo cristão está meio fora de moda. Me escuta,cretino! Tô falando do Pavão Cabeçudo, quem é você? Se liga, cara!
Presta atenção.
Imagino que segunda-feira de manhã – por conta das várias ressacas & compromissos acumulados – seja o único dia da semana que não sirva (ou caiba) caráter algum no figurino do Pavão. Mas aí a secretária eletrônica, ou o Chocotone, quebram o galho dele. Quem é Chocotone? Você parece um ingênuo, meu caro. Não lhe falei que ele tinha um namorado que trabalhava de garçom numa pizzaria? Pois então! Trata-se do Chocotone: o namorado invisível do Pavão Cabeçudo. Um subsídio. Aliás, tudo é subsídio e todo subsídio tem seus desdobramentos e contrapartidas. Aprenda. Já ouviu falar em capitalização, joint venture?
Digamos que o Chocotone é um investimento. Ou algo que dá uma aura de diversão e descompromisso. Não, seu mané, o que conta é que ele de fato existe, e não o contrário. O que conta é o verniz.
Quem é você?
Pensa bem. Você, meu caro, antecipou o niilismo e o anarquismo e várias revoluções que não deram em absolutamente nada. Antecipou Freud. Atacou ferozmente a mentalidade positivista, voltou-se contra o racionalismo ocidental, encantou Nietzsche e acabou aí no acostamento da Imigrantes, vendendo caranguejo. Portanto, cala a boca e me escuta.
Qual livro? “Recordação da casa dos mortos”? Tá me tirando, mano? Como você vai lançar um livro desses… na Livraria da Vila? Já passou da hora de você amadurecer, meu caro. Ninguém quer saber de situações extremas. Seja adulto, pense nos grandes vultos que o antecederam. Escreva sobre lancheiras e papel alumínio. O Pavão Cabeçudo vai adorar, e decerto vai citá-lo no blogue dele. Pense
Informe-se. O que você faz é uma quimera, cocô de galinha perto da “oralidade” do Pavão Cabeçudo. Isso mesmo, “oralidade”. Não, não. Ele não é um cantor, e não é ator – ou talvez seja. Sei lá. Por favor, não me interrompa mais. Ouça!
Nosso encantador Pavão Cabeçudo é herdeiro dos morros, das vielas e das lavadeiras do São Francisco, ele é abençoado pelos Orixás e feio pela própria natureza. É feio, mas é bonito. O pavão sempre dá um jeito! Ele é pior do que Deus! Em primeiro lugar, porque ele existe e está em todos os lugares – e sempre está sempre bem acompanhado. Aliás, muito bem acompanhado.
Esqueça os abismos, os desvãos tonitruantes da alma… a desolação, e esqueça o frio da eternidade. Puta cara chato, parece que vive na Rússia! Presta atenção! Não é que ele seja “pior” que Deus, digamos que é mais eficiente. Sim, porque ele tem uma agenda e não brinca em serviço, nosso Pavão Cabeçudo usa os contatos e as paixões para conduzir sua vida minúscula, e se deixa prazerosamente levar pelas idiossincrasias alheias: porque sabe exatamente qual o seu tamanho. Isso é mais do que intuição. Sabe de onde veio, e para onde vai. Inveja, eu?
Confesso: tenho inveja de você, queria ter escrito “Memórias do Subsolo”. Qual o sentimento que eu tenho por ele? Bem, mais ou menos o sentimento de alguém que foi roubado, e que cometeu o crime de ter seus bens subtraídos, entende?
Não entendeu? Nem eu. Ele surrupiou minha razão também. Sobrou-me apenas a mesquinharia, e o isolamento. Da mesma forma que você não consegue acompanhar os carros que passam em alta velocidade na Imigrantes, e se volta desconsolado para o cesto de caranguejos, eu vejo (aliás, vi) meus dias de fartura e reconhecimento serem subtraídos por ele. A diferença é que carrego escorpiões no meu cesto. O que eu tinha de mais torpe, humano e trivial, ele levou.
Você bem sabe o que é ter a lama por companhia. A festa – infelizmente – é no outro apartamento, como diria a lésbica mais talentosa da MPB, depois da Ângela Rô Rô.
Ah, meu caro. Eu peço que tenha mais um pouco de paciência. Sei que perdi o crédito, e que os meus adversários me tomam por ranzinza, rancoroso e maluco. Concordo com as duas primeiras acusações. Agora, não aceito que me desqualifiquem dizendo que sou maluco, isso é golpe baixo. Posso ter perdido a razão, mas não enlouqueci. Eu sei exatamente o que perdi. Maluco, não. De jeito nenhum!
Me escuta, apenas isso. Depois conclua da forma que melhor lhe convier. Escuta, escuta. Ninguém nasce em Garanhuns ou em Sertânia por acaso. Buenos Aires era apenas um esconderijo. Se o Pavão quisesse, poderia transformar água
Mas pode ter a certeza de uma coisa, meu caro amigo: vamos apodrecer antes dele. O presente pode durar muito tempo.
O Pavão é a síntese de nossa época. Uma época sem talento. Não foi coincidência a libertação dele. O argentino que o libertou sabia o que estava fazendo. Inventou a chave do conhecimento e jogou fora.
Agora as luzes se apagaram. Ele está de volta. E trouxe a corrupção consigo, e junto trouxe vários cúmplices e testemunhas – que preferiram permanecer
Isso tudo foi arquitetado por Borges, para se vingar da cegueira e da aversão que sentia pelas mulheres: leia-se erudição. Não por acaso, as maiores influências do Pavão Cabeçudo são as canções que ouvia da mãe lavadeira. Tudo é improvisação e repertório: “sou filho de lavadeira, vixe, ôba-ôba”.
As platéias se identificam. Um pouco com o deboche. Outro tanto com a miséria festejada. Mas sobretudo com a boçalidade e a falta de alternativas. Ele é o Rei dos esgotos. O Rei das conscienciazinhas pesadas.
O argentino deve estar se contorcendo às cambalhotas na eternidade. Tirou da cara de todos. Ele sabia que o Aleph ia virar Carmem Miranda, e depois Pavão Cabeçudo. Barbárie e civilização, as duas faces da mesma moeda, lembra?
Tá difícil, meu caro Dostoiévski . E eu desconfio que a minha situação é mais comprometedora do que a sua. Porque nasci do ventre da patroa da mãe do Pavão Cabeçudo – isso sim é imperdoável.
E o pior de tudo é que também não sei fazer rimas, nem trocadilhos. A propósito: quanto está a dúzia do caranguejo aí? Tem um lugar para mim no acostamento?
Onde o conheci? Foi em 2001, no Franz Café da rua Fradique Coutinho.
Aqui faço uma pausa.
Quer saber mais? Quer saber as histórias sórdidas do Franz Café? Já ouviu falar de uma tal de Geração 90? Pois foi lá que tudo começou…
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país.
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